PORQUE (E COMO) PUBLICAMOS AS DENUNCIAS CONTRA ALYSSON MASCARO

Não é o tipo de trabalho que gostamos de fazer – é arriscado, custoso e desgastante. Mas é o certo.



Na terça-feira, publicamos uma reportagem reveladora sobre dez denúncias de assédio e abuso sexual contra Alysson Mascaro, professor de Direito da USP e figura de grande influência no meio acadêmico.

A investigação, que durou meses, baseou-se em 16 fontes, além de documentos e mensagens que corroboravam as alegações, revelando um padrão de comportamento. Os nomes e detalhes que pudessem contribuir para a identificação das fontes foram ocultados devido ao medo de retaliação.

O impacto foi imediato: no dia seguinte à publicação, a pedido do centro acadêmico e de entidades de graduação e pós-graduação, a Faculdade de Direito da USP anunciou a abertura de um procedimento preliminar para investigar as acusações.

Recebemos outros 25 relatos de supostas vítimas, ainda não verificados, cujas histórias seguem o mesmo padrão das denúncias iniciais apuradas.

Mascaro afirmou que “vem sendo vítima de crime cibernético, sofrendo um processo de perseguição” por pessoas que, por meio de anonimato, “vêm buscando atacá-lo em sua honra”.
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Desde que publicamos a reportagem com as denúncias de assédio e abuso sexual contra Alysson Mascaro, recebemos muitas mensagens de apoio, solidariedade e novos relatos parecidos com aqueles que contamos. Também chegaram questionamentos ao nosso trabalho.

É esperado. Uma denúncia desta magnitude, contra uma pessoa influente e querida por muitos, é chocante. E foi assim também para a nossa equipe, desde que ouvimos o primeiro relato. É uma reportagem difícil de ser feita, não apenas tecnicamente, mas também emocionalmente. Não é o tipo de trabalho que gostamos de fazer – é arriscado, custoso e desgastante. Mas é o certo.

Entendemos e respeitamos as críticas e dúvidas, e queremos compartilhar com você como fizemos esse trabalho. Sabemos os riscos e as responsabilidades que carregamos. É por isso que fomos extremamente conservadores com as denúncias contra Mascaro, como sempre somos em relação a qualquer revelação que tenha o poder de afetar irreparavelmente a vida das fontes, das vítimas e dos acusados.

Muitas vezes, nossas investigações têm consequências reais, e nossa redação e seus protocolos são projetados para lidar com esse risco com a seriedade necessária.

Desde que recebemos a primeira informação sobre o caso, checamos e começamos a ouvir alunos e ex-alunos por diferentes meios, fazendo contatos por múltiplas fontes ligadas à Faculdade de Direito da USP, ao Mackenzie e outras instituições.

Pouco a pouco, foram aparecendo as vítimas dispostas a contar suas histórias.

É importante observar que nem todas as fontes têm ligações entre si ou mesmo estavam cientes umas das outras. Algumas abordaram o Intercept com suas denúncias, outras foram procuradas por nós.

Essa variedade de fontes é um elemento importante ao lidar com acusações delicadas, em que a identificação de um padrão de comportamento é chave para estabelecer a consistência das histórias.

As dez pessoas com casos citados na reportagem tiveram seus relatos anonimizados para protegê-las de represálias e revitimização – mas elas foram rigorosamente identificadas no processo de reportagem, inclusive com encontros presenciais e videochamadas.

Conhecemos e confirmamos as identidades e fatos essenciais de todos. O que não pudemos confirmar foi excluído da matéria.

Isso está detalhado, inclusive, no texto da reportagem – porque sabíamos que seria algo usado para tentar descredibilizar a apuração.

Então, cabe deixar claro, mais uma vez: não se tratam, apenas, de dez “relatos anônimos”, como defensores de Alysson Mascaro nos meios jurídicos e midiáticos estão afirmando. São histórias de dez pessoas diferentes com nome e rosto – que não apareceram pois, sabemos, o julgamento pode ser cruel com as vítimas (como a reação à reportagem pôde comprovar).

O jornalismo verdadeiramente independente é uma ferramenta vital para a busca da justiça quando nossas instituições não conseguem proporcionar um ambiente adequado para isso, o que ocorre com frequência. Se isso não fosse verdade, o Intercept não precisaria existir.

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As vítimas já tinham sinais claros de que as denúncias por meio de canais formais seriam extremamente arriscadas. Conforme noticiamos, membros do núcleo de pesquisa de Mascaro na USP tinham a função de apagar comentários em sua conta no Instagram sobre os supostos assédios sexuais cometidos pelo professor.

Mas só os relatos, conseguidos semana após semana, após uma apuração incansável da Laís Martins, em parceria com o editor Leandro Becker, não eram suficientes.

Era preciso confirmar o que as vítimas falavam: e-mails enviados, mensagens, grupos, rastros que sustentavam as alegações. Era preciso confirmar se o número atribuído ao professor era dele mesmo. Era preciso confirmar datas e horários. Nós confirmamos. A reportagem passou por quatro editores.

E, para garantir que nada escapasse, ainda recorremos à checagem externa, uma equipe de jornalistas independentes que trabalham conosco há anos e são responsáveis por confrontar cada linha do texto com os documentos, áudios e transcrições usados para embasá-las.

Infelizmente, confirmamos. Digo infelizmente porque matérias sobre abuso sexual são extremamente desvantajosas para nós como uma organização.

Elas inevitavelmente levam a ataques contra nosso caráter e profissionalismo e, na maioria das vezes, a batalhas legais longas e caras em um sistema que é desfavorável ao jornalismo que não se limita a repetir o que as instituições decidem como fato. Mas é por isso que existimos.

Foi a mesma razão que nos levou a publicar recentemente um caso relacionado a Silvio Almeida. Porque seguimos princípios, e não ídolos. Porque as vítimas confiaram em nós. Porque os leitores que financiam a grande maioria de nossas operações confiam em nós. E porque o nosso papel é não esconder um fato que é de interesse público, mesmo que ele seja inconveniente e profundamente decepcionante.

Tivemos cuidado em mandar um e-mail detalhado a Mascaro, à Faculdade de Direito da USP e ao Mackenzie, para garantir que cada ponto tratado na reportagem pudesse ser rebatido por eles. A resposta, bem menos detalhada, chegou e foi publicada, inclusive na íntegra – assim como mais detalhes sobre o posicionamento público do professor, que afirma que está passando por uma onda de ataques e assédio virtual.

O número de relatos que veio depois da publicação mostrou que o caso pode ser maior e mais profundo do que o que relatamos. Além dos comentários públicos, ainda há pelo menos 25 outras possíveis vítimas que nos procuraram por inbox e por e-mail com histórias parecidas. Como todos os que ouvimos, a maioria delas tem medo de aparecer e sofrer retaliações.

Muitos outros comentaram nas mídias sociais alguma variação de “finalmente isso se tornou público”. Não podemos confirmar esses posicionamentos (ainda, pois esse processo de apuração é longo e trabalhoso, e nós não nos limitamos a publicar “relatos anônimos”), mas eles sugerem que as acusações que publicamos não são um complô limitado, repentino e politicamente motivado, como alguns dos defensores de Mascaro gostariam que você acreditasse.

O Intercept tem uma política editorial para limitar ao máximo o uso de fontes anônimas, sempre explicar o uso do anonimato e usar padrões mais altos de evidência nesses casos, como documentação e fontes múltiplas e independentes. É um padrão mais rigoroso do que a maioria das redações. Nesse caso, esses padrões foram seguidos à risca.

Como o caso Mari Ferrer ensinou, quando a vítima opta por aparecer – seja na imprensa ou no judiciário –, na maioria das vezes, ela é exposta, descredibilizada e humilhada. Nossas reportagens sobre esse caso levaram até mesmo a uma nova lei que visa combater a revitimização no processo judicial.

Por isso, podemos questionar aqueles que dizem que as vítimas deviam ter procurado a justiça antes do jornalismo – porque sabemos que a justiça nem sempre atua para proteger os mais vulneráveis.

Não é fácil assumir ter sido vítima de violência sexual no Brasil e essa exposição pode, às vezes, ser também traumatizante. A reação à nossa reportagem, e as pessoas tentando descredibilizar o nosso trabalho, deixam claro que o medo de nossas fontes não era infundado.

Felizmente, os críticos são minoria. Recebemos centenas e centenas de mensagens de apoio, muitas aliviadas de que finalmente o silêncio foi rompido. O Centro Acadêmico XI de Agosto, além das representações dos alunos de pós-graduação e graduação, já oficiaram a diretoria da Faculdade de Direito da USP para que uma sindicância seja aberta para apurar os fatos.

A faculdade confirmou que deu andamento na investigação. Como tem que ser.

O nosso papel é reportar o que essas pessoas viveram e ficou muito tempo abafado dentro da faculdade. É, também, usar a força do jornalismo para mover estruturas e pressionar, por exemplo, para que as instituições garantam mecanismos apropriados de denúncia e que outros vulneráveis não tenham mais que passar por aquilo.

Porque o jornalismo pode ajudar a trazer casos à tona – e deve fazer isso –, mas não é o foro adequado para julgamento. Nós jogamos luz no que estava escondido, para que assim as estruturas se movimentem.


Que o caso seja devidamente apurado nas instâncias apropriadas e que sirva como reflexão – para o nosso campo, para o jornalismo, para a universidade e para a sociedade.




GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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