MORCEGOS INFESTAM ESCOLAS INDÍGENAS NO XINGU CONSTRUÍDAS PARA COMPENSAR BELO MONTE

Imagens exclusivas mostram situação insalubre de escolas erguidas pela Norte Energia em aldeias indígenas do Médio Xingu
                                                                            Tyapompo Arara

Por Isabel Seta | Edição: Giovana Girardi

Pelo menos duas escolas de aldeias indígenas no Médio Xingu, no Pará, estão tomadas por infestações de morcegos que impedem a realização de aulas para cerca de 150 alunos.

Imagens exclusivas obtidas pela Agência Pública mostram o piso de lajotas das construções coberto por uma espessa camada de cor marrom. As paredes brancas estão sujas de rastros de fezes. Em várias salas, o forro do teto cedeu, tamanho o peso dos dejetos. Nos banheiros, insetos se aglomeram em cima da sujeira. Em um vídeo gravado para a reportagem, é possível escutar o som dos morcegos.


É nesta situação insalubre que se encontram as escolas da aldeia Iriril, localizada na Terra Indígena Cachoeira Seca, lar de quase 2.000 indígenas Arara, e da aldeia Ita’Aka, na Terra Indígena Koatinemo, onde vivem cerca de 300 pessoas da etnia Assurini do Xingu. A maior parte dos dois territórios indígenas está no município de Altamira.

Ambas as escolas foram construídas pela empresa Norte Energia como parte das ações de compensação pela Usina Belo Monte. A segunda maior hidrelétrica do Brasil afetou 13 Terras Indígenas, barrou o fluxo do rio Xingu – impactando dezenas de espécies – e expulsou ribeirinhos e beiradeiros de suas casas, empurrando-os para periferias de centros urbanos, como o de Altamira.

Há relatos de outros casos de infestação, porém eles não foram documentados. Como todas as escolas da Norte Energia foram construídas da mesma forma, com o mesmo forro, é possível que o problema se repita em mais lugares.
A situação vem à tona no momento em que a licença de operação de Belo Monte completa três anos vencida. A autorização expirou em 24 de novembro de 2021, mas como a empresa pediu a renovação dentro do prazo estipulado por lei, a usina pode continuar operando até a manifestação definitiva do Ibama, que ainda não se pronunciou sobre a renovação ou não da licença.
                                                                                                             Kwai Assurini
Sala da escola da aldeia Ita’Aka, na Terra Indígena Koatinemo, no Xingu, com o piso e as paredes cobertos de excrementos de morcego. Parte do forro cedeu devido ao peso dos dejetos

“O odor é muito forte. A gente tem medo de causar doença. Dá muita dor de cabeça nos nossos filhos”, relata Tyapompo Arara, da aldeia Iriri, onde a presença dos animais já comprometeu a rede elétrica, deixando a escola no escuro.

A preocupação com a saúde é justificada, já que morcegos podem transmitir doenças infecciosas graves, como raiva e leptospirose.

“A estrutura está cada vez mais sendo danificada. Isso nos deixa muito preocupados. A gente vem passando essa informação para a Norte Energia, para os órgãos e até agora não tomaram providências”, afirma Kwai Assurini, cacique da aldeia Ita’Aka.

As infestações começaram há cerca de quatro anos atrás. Mas, segundo os indígenas, nenhuma medida foi tomada pela Norte Energia ou pela Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Altamira, apesar de terem conhecimento da situação pelo menos desde o ano passado.

Em uma reunião realizada nos dias 16 e 17 de novembro de 2023 entre os Arara da TI Cachoeira Seca e representantes da Norte Energia, da Semed, do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Considi) e do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), o primeiro item da pauta foi a infestação na escola.

As lideranças indígenas relataram que o teto estava caindo por causa do peso da grande quantidade de fezes dos morcegos e expressaram preocupação com a saúde das crianças e eventual contaminação das merendas. Nas imagens obtidas pela reportagem, é possível ver fezes até nas paredes da cozinha onde as refeições eram preparadas.

“A Norte Energia explica que foi criado um GT (Grupo de Trabalho) que reúne Semed, TEEMX (Território Etnoeducacional do Médio Xingu), Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), arquitetos, engenheiros da Norte Energia e da prefeitura para vistoriar e realizar tratativas para o que deve ser reformado e ampliado na infraestrutura das escolas do Médio Xingu. Explica que já foi realizada duas vistorias [sic]”, aponta a ata da reunião, disponível publicamente no site da Rede Xingu+, uma articulação da sociedade civil contrária ao barramento do rio Xingu.

Na ocasião, a Semed disse que o grupo de trabalho melhoraria o processo das construções, “uma vez que não será somente a empreendedora que vai decidir as plantas”. Entre os encaminhamentos previstos, estava a possibilidade de fazer a reforma em duas etapas, primeiro nas salas em piores condições, “evitando prejudicar o ano letivo”.

Alguns meses antes da reunião, em abril do ano passado, a coordenação da escola da aldeia Iriri havia enviado um ofício à Semed, com fotos da escola, solicitando uma reforma urgente. “Informo que o forro do banheiro e da cozinha caiu devido a grande quantidade de fezes de morcego, e o odor insuportável [torna] inviável a manipulação de alimentos no local”, diz o documento.

Desde então, porém, nada foi feito. A inação pode ser explicada, em parte, pela falta de clareza sobre a responsabilidade pelas estruturas escolares. Isso porque a Semed ainda não recebeu formalmente as escolas construídas pela Norte Energia. O recebimento é uma etapa formal que indica que o órgão público reconhece que a estrutura e todos os itens combinados foram de fato entregues. Enquanto essa etapa não é completada, empresa e Semed ficam numa espécie de jogo de empurra.

O 42º relatório de Monitoramento Socioambiental Independente da Belo Monte, feito pela JPG Consultoria e Participações para o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), publicado em dezembro do ano passado, já afirmava que a Norte Energia precisava reformar “todas as 19 escolas já construídas e entregá-las definitivamente” às secretarias de educação, obrigações que, conforme o relatório, “se arrastam desde o início do licenciamento”.

O documento não menciona as infestações de morcegos nas escolas, mas há citação ao problema em Unidades Básicas de Saúde Indígenas (UBSI) também construídas pela empresa como medidas compensatórias por causa da usina.

“Os pontos de atenção para as reformas já foram identificados, sendo um dos problemas a infestação por morcegos, que será tratada com a reforma nos telhados”, afirma o relatório. Segundo a consultoria, a ideia da Norte Energia era “realizar as obras de saúde e educação em conjunto, a fim de minimizar o tempo de mobilização de mão de obra no interior das aldeias”.

Segundo os Arara, a unidade de saúde da aldeia Iriri também foi infestada por morcegos.

Procurada pela reportagem, a Norte Energia afirmou que, entre 2016 e 2020, 21 escolas e 31 UBSI foram “devidamente construídas e totalmente equipadas pela companhia” e estão em uso, respectivamente, pelas Secretarias Municipais de Educação e pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). A empresa afirmou, ainda, que os órgãos públicos não teriam promovido as “manutenções e as adequações necessárias ao bom funcionamento e conservação das 52 estruturas”.

“Ciente de suas responsabilidades no processo de licenciamento ambiental, a Norte Energia esclarece que, como parte da política da empresa, para qualquer nova ação relacionada a essas infraestruturas, construídas ou por construir, a companhia necessita do recebimento oficial das edificações já implementadas”, afirmou a empresa em nota (leia a íntegra ao final da reportagem).

Já a Semed de Altamira não respondeu às perguntas da Agência Pública até a publicação deste texto.

Igreja e galinheiro viraram escolas
                                                                                                                 Kwai Assurini
Galinheiro onde as crianças Asurini da aldeia Ita’Aka estão estudando. Escola foi abandonada por causa da infestação de morcegos

Nas aldeias Assurini e Arara, os indígenas se viram obrigados a parar de usar as escolas feitas pela Norte Energia e mover as aulas de crianças e adolescentes para outros espaços.

As crianças da aldeia Ita’Aka estão estudando em um galinheiro. Já os alunos do ensino médio estão sem aula por falta de um local adequado.

Finalizada pela Norte Energia em 2017, a escola da aldeia foi usada por apenas dois anos, segundo o cacique.

“Depois disso, foi impossível realizar aula na escola, por conta dos morcegos”, contou. Ao longo dos últimos quatro anos, os animais foram tomando todo o forro da estrutura, enquanto os avisos dos indígenas sobre a situação eram ignorados.

“A gente vem cobrando, por meio de reunião, por meio de ofício, pela nossa associação. Mas não tivemos resposta deles de quando vão consertar”, disse Kwai Assurini.
                                                                                                                    Kwai Assurini
Indígenas improvisaram sala de aula dentro de galinheiro para crianças poderem estudar, depois da escola erguida pela Norte Energia ter sido tomada por morcegos

Na aldeia Iriri, a Norte Energia terminou a construção em 2020, segundo os indígenas. Há cerca de três anos, os morcegos começaram a invadir, conta o cacique Mobu Odo Arara. Conforme a infestação se agravou, primeiro a comunidade parou de usar os banheiros, o pátio, a cozinha, além de algumas salas de aula, onde os morcegos se instalaram primeiro e que começaram a ficar cheios de excrementos. O alojamento dos professores também ficou inviabilizado.

Ao longo de 2023, a empresa fez duas vistorias no local, mas nada de uma reforma começar, diz o cacique.

Em novembro deste ano, os indígenas decidiram suspender totalmente o uso da escola. Agora, os estudantes estão tendo aula em uma igreja evangélica na comunidade.

“A escola está numa igreja agora, eles também tinham um alojamento e cederam para a gente fazer a merenda dentro do alojamento”, afirma Tyapompo Arara.

Condicionantes descumpridas
                                                                                                         Reprodução/Tv Brasil
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, é a segunda maior do Brasil, atrás apenas de Itaipu. Localizada na bacia do Rio Xingu, próximo ao município de Altamira, no norte do estado Pará

Construída entre 2011 e 2015, Belo Monte só foi autorizada depois de a Norte Energia se comprometer com uma série de medidas condicionantes para mitigar e compensar os impactos socioambientais da usina – como implementar atividades produtivas, providenciar saneamento básico urbano e reassentar milhares de famílias removidas.

Até hoje, no entanto, a empresa não cumpriu todas as condicionantes estabelecidas.

“É um conjunto tão grande de problemas, que a gente tem dificuldade de fazer o controle social do que de fato a Norte Energia faz ou não faz”, relata a antropóloga Luisa Molina, analista sênior do Instituto Socioambiental (ISA). “Belo Monte sempre foi um bicho de sete cabeças, mas agora vemos uma extrapolação disso, o que torna ainda mais difícil acompanharmos [as condicionantes].”

Em junho de 2022, um parecer do Ibama já tinha apontado que, de 46 medidas condicionantes, apenas 13 tinham sido totalmente cumpridas pela empresa até então.

Entre as medidas previstas está a construção de 34 escolas indígenas, definidas pelo Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI), aprovado durante o licenciamento ambiental da empresa e com ações previstas para 35 anos. Até agora, 21 foram construídas.

“Algumas estão sendo utilizadas, outras precisam ser reformadas”, diz outro relatório de monitoramento da JPG Consultoria para o BNDES, de junho deste ano. O documento, novamente, não menciona as infestações de morcegos nos prédios das aldeias da Terras Indígenas Cachoeira Seca e Koatinemo.

Além de escolas, bases operacionais e postos de saúde foram erguidos pela empresa como compensação. Mas, segundo a consultoria, nenhuma das “mais de 80 obras de grande porte já realizadas foi formalmente recebida pelas instituições”. Para concluir esses programas, aponta o relatório, “é necessário qualificar o diálogo com instituições como Funai, DSEI e Semed”.

Outras ações previstas também não foram realizadas, segundo os povos indígenas afetados.

“Uma das nossas condicionantes era fazer saneamento básico, fazer os banheiros com o esgoto. Eles não fizeram, fizeram casas de alvenaria, mas sem banheiros”, diz Kwai Assurini.

Como no caso das escolas, os problemas se arrastam há anos. “Há inequívoca existência de diversos passivos e insatisfações dos indígenas com relação à execução do PBA-CI e da condicionante do Plano de Proteção Territorial Indúgena”, informou a Defensoria Pública da União em uma recomendação já em agosto de 2022.

Em outubro do ano passado, o Conselho Nacional de Direitos Humanos também se manifestou e recomendou que o Ibama não renove a licença de operação “enquanto não forem integralmente cumpridas as condicionantes”.

Em setembro deste ano, manifestantes das etnias Arara, Assurini e Juruna bloquearam a rodovia Transamazônica, em Vitória do Xingu, para protestar contra a Norte Energia e pedir uma revisão do Plano Básico Ambiental.

Nesta terça-feira (26), cerca de 70 indígenas Kayapó ocuparam a sede da Norte Energia em Altamira. Segundo jornais locais, o protesto foi motivado pelo abandono dos projetos que deveriam ser executados pela empresa.
O que diz a Norte Energia

A reportagem fez várias perguntas específicas à Norte Energia, entre elas: quais medidas a empresa já tinha tomado ou pretendia tomar em relação às infestações de morcegos e por que, passado mais de um ano da realização de uma reunião com os indígenas Arara, em que a empresa afirmou ter estabelecido um grupo de trabalho para reformar as escolas, nada ainda foi feito.

Também questionou se a empresa tem conhecimento de outras escolas nesta situação, além das UBSI afetadas pelo problema. E, ainda, por que as outras 13 escolas determinadas no licenciamento não foram construídas até agora. E, por fim, quais ações concretas estão sendo tomadas para cumprir as condicionantes indígenas, como demandam diversas etnias da região.

A empresa respondeu por meio de uma única nota, disponível na íntegra abaixo:


“A Norte Energia, concessionária da Usina Hidrelétrica Belo Monte, assumiu as construções de 34 escolas indígenas e de 34 Unidades Básicas de Saúde Indígenas (UBSI) como parte das obrigações do licenciamento ambiental. Desse total, entre 2016 e 2020, 21 escolas e 31 UBSI foram devidamente construídas e totalmente equipadas pela companhia.

Desde então, as 21 unidades de ensino, cujos projetos e edificações seguiram o padrão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), vinculado ao Ministério da Educação (MEC), estão em uso pelas Secretarias Municipais de Educação. Da mesma forma, as 31 UBSI, construídas de acordo com o projeto do Ministério da Saúde, encontram-se em funcionamento pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI).

As unidades foram implantadas dentro das conformidades técnicas, o que permitiu que fossem utilizadas ao longo de todos esses anos, contudo, apenas cinco escolas foram oficialmente recebidas pelo órgão competente. Embora em uso pelas instituições, essas não promoveram as manutenções e as adequações necessárias ao bom funcionamento e conservação das 52 estruturas.

A mesma conjuntura se repete em relação aos Sistemas de Abastecimento de Água (SAA), incluindo aqueles construídos na TI Koatinemo, do povo Assurini.

Assim, ciente de suas responsabilidades no processo de licenciamento ambiental, a Norte Energia esclarece que, como parte da política da empresa, para qualquer nova ação relacionada a essas infraestruturas, construídas ou por construir, a Companhia necessita do recebimento oficial das edificações já implementadas.

Cabe lembrar que desde 2011, início da construção de Belo Monte, a Norte Energia já destinou R$ 1,2 bilhão de investimentos para comunidades indígenas, com destaque em educação, saúde, preservação do patrimônio cultural, atividades produtivas e proteção territorial.

A empresa também estruturou e mantém desde 2015 o Centro de Monitoramento Remoto da Funai, que vigia 98% das Terras Indígenas do país, onde vivem 868 mil indígenas. O sistema é usado para fiscalizar e ajudar a combater desmatamentos, degradação, incêndios florestais e ocupação e uso criminosos em cerca de 600 TIs da Amazônia Legal.”


GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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