''O QUE O MUNDO CONHECE DA EXISTÊNCIA DE PESSOAS QUE DA DOR PSIQUICA FAZEM NASCER A POESIA?"

Fabiane Valmore

Pesquisadora e ativista pela inclusão dos usuários nas discussões da Rede de Atenção Psicossocial fala sobre o efeito transformador, ainda que limitado, da arte para os "artistas da saúde mental" brasileiros, grupo saído do legado de Nise da Silveira

Fabiane Valmore no andar do Departamento de Sociologia da UFPR, em Curitiba. Ao fundo, desenho do artista de rua Júlio César Ferreira. Foto: Marcos Solivan/Sucom UFPR

POR CAMILLE BROPP

Não foram convencionais os itinerários da pesquisa de Fabiane Helene Valmore, socióloga e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Talvez porque o estudo tenha assumido o papel de via da sua própria vida pessoal, interligado a ela. Nos últimos dez anos, Valmore enfrentou sofrimento psíquico intenso, construiu sua aproximação com o movimento antimanicomial e deu voz aos chamados “artistas da saúde mental” na monografia defendida no Departamento de Sociologia da UFPR em 2021 — sua terceira graduação.

Desde a década de 1950, quando a médica psiquiatra Nise da Silveira fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, o termo “artistas da saúde mental” serve para designar quem se expressa pela arte como forma de psicoterapia. Para quem a vivencia, é uma dinâmica que começa terapêutica e pode terminar como forte afirmação de identidade.

A arte libertou o cotidiano dos entrevistados de Valmore do histórico de internamento — nas diferentes versões de hospício que existem — e os alçou a degraus célebres na sociedade. São músicos com álbuns lançados, pintores com exposições agendadas, dançarinos famosos do Carnaval carioca.

Eles dizem que a arte traz autoconhecimento e cria ligações comunitárias salvadoras. Não traz, porém, sustento. É essa lacuna que justifica uma crítica da pesquisadora, direcionada às metas da militância e das políticas públicas. “A arte faz muito, mas não é verdadeiramente empoderadora. [As instituições] Não gostam que fale isso, mas é a verdade”, avalia ela, hoje amiga de muitos desses artistas.

Fato é que o objeto de estudo é hoje parte substancial da vida de Valmore, que continua buscando dar voz aos usuários da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Idealizou e organizou a 1ª Conferência Livre Nacional de Usuários da Raps, que ocorreu em maio de 2023, em Brasília, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde.

Também faz parte do pequeno grupo de estudiosos e líderes comunitários que tentam dar alguma chance ao tema da reforma psiquiátrica na capital paranaense.

Professora de matemática e mecânica na rede pública estadual há mais de 20 anos, ela criou recentemente um clube de ciências sobre saúde mental no Colégio Estadual Rodolpho Zaninelli (Cerz), por meio de edital da Rede de Clubes de Ciência da Fundação Araucária. O Cerz está localizado no bairro Cidade Industrial de Curitiba (Cic) — o maior em área e população, e o com mais problemas sociais do município.

Nesta entrevista à Ciência UFPR, concedida parte pessoalmente e parte por e-mail, Valmore fala sobre a sua pesquisa em arte da saúde mental, sobre o mundo desses artistas, sobre a sua própria experiência com os equipamentos de saúde mental de Curitiba e do Rio, e sobre o seu ativismo.

A entrevista é intercalada com trechos em áudio (coletados da pesquisa e editados para clareza) e com galeria de fotos dos entrevistados por Valmore na sua monografia.

A sua pesquisa é classificada como uma “autoetnografia”. Ou seja, a sua história pessoal tem parte nela. Você poderia contar sobre como se tornou pesquisadora e ativista pela saúde mental e pela luta antimanicomial?

Fabiane Helene Valmore | A partir da minha própria entrada num processo de sofrimento psíquico. Em 2016 recebi meus primeiros encaminhamentos médicos para a psiquiatria e para atendimentos com psicólogo. Não me interessei em fazer uso de medicação psiquiátrica, então fui buscando alternativas além dos atendimentos psicoterápicos. Em abril ou maio de 2018 me ocorreu num final de tarde ‘sentir saudades do atendimento com o psicólogo’. Tamanho foi o meu espanto que pesquisei no Google o que isso poderia significar e acabei caindo no conceito psicanalítico de transferência.

Dei início assim às minhas primeiras leituras de textos vindos da psicanálise e conheci o trabalho da doutora Nise da Silveira. Não só conheci como desejei e busquei, em julho de 2018, atendimento no Museu de Imagens do Inconsciente [fundado por Nise da Silveira no Rio de Janeiro].

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Em novembro fui aceita como cliente no museu e ocorreu o Seminário Memórias da Loucura I. Participando do seminário, tive o meu primeiro deslumbre fortalecido sobre realizar um dia uma pesquisa sobre a loucura.

Pouco antes o seminário, conheci também o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, na antiga Colônia Juliano Moreira.

No dia em que fui, não havia exposição em cartaz, mas insisti, fui autorizada a entrar no prédio e me deparei primeiro com dois rapazes no corredor: Luizinho e Ivanildo [Ferreira Sales], monitores do museu e com a experiencia de sofrimento psíquico. Diana Kolker [curadora pedagógica] conversou comigo e me deu de presente um livro, o Das Virgens em Cardumes e da Cor das Auras (2017), uma coletânea escrita por artistas residentes que narram experiências artísticas.

Foi lendo este livro que nasceu o meu interesse de investigar sobre a loucura, mais precisamente sobre a romantização que se faz dela.

No final de janeiro de 2019 eu comecei a frequentar o Museu de Imagens do Inconsciente quase que diariamente. Foi encantador ter permanecido até o final de março e desolador receber alta. Ali com meus colegas comecei a recrutar os entrevistados para uma pesquisa. Esboçamos juntos um questionário de entrevistas.

Além das atividades terapêuticas no museu e no Espaço Travessia, participei em fevereiro de 2019 dos rituais do Teatro de DyoNises com o médico psiquiatra e ator Vitor Pordeus, que idealizou, fundou e dirigiu o Hotel da Loucura dentro do Instituto Nise da Silveira. Foi por meio das pesquisas citadas pelo Pordeus que me deparei com uma pesquisa autoetnográfica pela primeira vez.

Falar de mim em diálogo com o outro foi me permitindo encontrar respostas e chão.

Foi com eles, com os participantes desta minha pesquisa, pessoas com a experiência daquilo que se chama de loucura, pessoas socialmente estigmatizadas e que, ainda que reconhecidas como artistas — da loucura, da saúde mental, da luta antimanicomial — travam incansável luta por reconhecimento.

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Eles almejam alcançar a condição de artista ‘cidadão comum’ como afirmou Orlando Baptista dos Santos, cantor e compositor da banda Cancioneiros do Ipu [Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Sonham poder viver da arte que produzem. Foi com eles que fui conhecendo e me aproximando da Luta Antimanicomial.

Fui me tornando pesquisadora no campo da saúde mental pelo desejo de saber como insurge da loucura o artista e o militante da Luta Antimanicomial.

Quanto mais eu me dava conta das experiências de desrespeito narradas por todos os participantes desta minha, nossa, pesquisa, realizada em cinco espaços artísticos-culturais inspirados no legado da Nise e localizados no interior de antigos hospícios do Rio de Janeiro. A exceção é o Teatro de DyoNises, que nos últimos dez anos vem atuando em vários pontos da cidade de modo independente e promovendo saúde mental pública e comunitária, ainda que nascido dentro do Instituto Municipal Nise da Silveira.

É por eles, por mim, pelos nossos e em defesa de políticas públicas de saúde mental antimanicomiais que eu sigo buscando compreender e lutando principalmente em defesa de duas pautas. A primeira, reconhecimento e valorização dos artistas da saúde mental. A segunda, ampliação da participação direta das pessoas usuárias da Raps no controle social do SUS [Sistema Único de Saúde].

Hoje se fala muito de saúde mental, existe visibilidade e construção de empatia para transtornos como depressão, TOC, hiperatividade e ansiedade generalizada. Mas parece que esse discurso não engloba todo sofrimento psíquico. O que se chama de “grave”, de “loucura”, parece ainda isolado e invisibilizado. É essa segregação que faz com que a luta antimanicomial permaneça uma luta, há 40 anos no caso do Brasil?

FHV | A Luta Antimanicomial é uma luta pelo cuidado em liberdade. Portanto, defende a democracia e o fim do manicômio. ‘Sem democracia, o manicômio vence’, diz o Edmar de Oliveira, que dirigiu o Instituto Nise da Silveira.

Transtornos mentais graves e persistentes como a esquizofrenia e a bipolaridade são comumente os ‘casos’ aceitos para atendimento pela Raps, mais precisamente pelos Caps [Centros de Atenção Psicossocial].

Infelizmente aquilo que hoje é socialmente reconhecido como loucura aparece na mídia [opinião pública] comumente relacionado à violência, como resultado de surtos psicóticos. Isso estigmatiza o sujeito em sofrimento psíquico e amedronta a sociedade. De algum modo, pessoas com sofrimento mental considerado grave, incluindo os decorrentes do uso abusivo e prejudicial de álcool e outras drogas, ainda persistem isoladas, pois atendidas dentro dos Caps.

Esses serviços, considerados substitutivos ao modelo manicomial, carregam consigo o olhar estigmatizante mesmo que seus usuários possam retornar diariamente para casa, para Unidades de Acolhimento [UAs, residências temporárias] ou para residências terapêuticas [alternativas de moradia para pessoas com longo histórico de internação, não são comunidades terapêuticas], por exemplo.

Esse olhar recai sobre elas por estarem na condição de pacientes psiquiátricos, facilmente reconhecida pelo fato de frequentarem tais serviços ainda não bem compreendidos pela sociedade.

Estar em tratamento no Caps, ainda que de modo muito diferente do oferecido pelo hospital psiquiátrico, significa infelizmente ter que sobreviver sob o peso do preconceito e do descaso, muitas vezes dentro do próprio Caps.

Centros de convivência, arte, cultura e economia solidária são dispositivos previstos na Raps, mas pouco presentes no Brasil.

São espaços coletivos amplos e potentes de socialização e ressocialização psicossocial e de promoção de saúde mental. De potência de vida, pois abertos à comunidade e sem a exigência de encaminhamentos médicos para fazer parte deles, podem contribuir para a inclusão e servem como espelho social e intersubjetivo. Reduzem estigmas e constroem o respeito à diversidade.

Renata Inocêncio, artista plástica de vertente contemporânea que pinta com a ponta dos dedos e compõe o grupo de clientes e a equipe de artistas do Museu de Imagens do Inconsciente

Talvez quando a sociedade se sentir em condições de permitir que as pessoas dialoguem sobre como se sentem umas para as outras, talvez quando o olhar e a escuta forem menos automatizados e preconceituosos — quando houver tempo, disposição, respeito, abertura e formação qualificada para isso —, a Luta Antimanicomial possa, quem sabe, começar a descansar.

Mas antes é preciso radicalizar e praticar a derrubada dos muros muito além dos muros físicos do hospício. Isso tudo passa pela necessidade, ainda existente, de defesa, reconhecimento, ampliação e financiamento do nosso SUS. Passa pela necessidade de maior compreensão e participação política da sociedade no processo de construção, defesa e controle social da democracia.

Pela ampliação do debate popular, acadêmico, social e político a respeito da loucura, pela aceitação da diferença. Como já dito: ‘Ninguém é doido. Ou, então, todos’.

Passa pelo respeito à vida e ao direito de ser o que se é, desligado de aviltamentos sociais e de práticas políticas e hierarquizadas de anulamento e segregação da diferença. Passa pela necessidade de afirmação e validação dos sujeitos, das suas singularidades, mesmo as radicais.

Como alcançar um pouco disso tudo numa sociedade adoecida e desimportada de si?

‘Cega, muda e surda. E preconceituosa por atitude’, nas palavras do Antonio Naná, músico percussionista da Cancioneiros do Ipub. Do singular ao social, como acolher o que nos é tão estranho? Senão, também, reconhecendo em nós mesmos o porquê de tamanho estranhamento?

Mesmo com certa apropriação de discurso de saúde mental que mencionamos acima para fins econômicos (medicamentos, coachings, washing, propaganda de empresas e afins), há alguma esperança de que essa conscientização chegue a beneficiar quem sofre com a manutenção da cultura dos manicômios?

FHV | Programas de conscientização e prevenção pontuais como o Setembro Amarelo, por exemplo, ainda possuem pouco alcance social. Precisamos de maior participação direta dos usuários da Raps no controle social do SUS, de educação popular em saúde, de políticas públicas antimanicomiais e práticas sociais, de comunicação e educacionais emancipatórias e mais orgânicas e capazes de quebrar tabus, para começar.

Quem se sente confortável e seguro para falar e em condições de escutar sobre ideação suicida? Onde temos espaço para externamos e dialogarmos sobre sentimentos como este? Mas o Setembro Amarelo comparece todos os anos.

Igualmente, onde temos liberdade e espaço seguro e qualificado para dialogarmos sobre experiências humanas radicalmente singulares? Temos no Brasil o 18 de Maio, Dia Nacional de Luta Antimanicomial, muito potente em alguns municípios do Brasil, mas incipiente na maioria dos outros.

E agora temos o recém-criado Dia Nacional das Comunidades Terapêuticas, também no dia 18, só que de agosto. Produto de uma série de retrocessos que a política de saúde mental brasileira vem sofrendo nos últimos anos.

Rogéria Barbosa, artista plástica do Atelier Gaia, vinculado ao Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, lembra como espaços terapêuticos ajudaram no desenvolvido do seu trabalho

Dito isso, do meu ponto de vista é ainda bastante utópica a esperança de que programas e campanhas de conscientização como celebração de dias nacionais e mundiais cheguem a beneficiar quem sofre com a manutenção da cultura manicomial. Ainda mais com a patologização da tristeza e dos modos radicais de se existir e, portanto, com a medicalização da vida. Muito a se caminhar, muito chão a se pavimentar.

E no meio disso tudo, ainda resta ou restaria compreender, reconhecer e combater os condicionantes sociais de adoecimento psíquico, como a pobreza, as violências, e as injustiças e as desigualdades sociais. Mas como combater justo o que sustenta, o que alimenta e reproduz o capital que nos adoece?

“Doente mental” é uma posição extremamente vulnerável e limitadora para um indivíduo estar dentro e perante a sociedade, parece uma situação de eterna tutela. De que formas a arte permite reposicionar socialmente essas pessoas?

FHV | Espaços públicos de tratamento de saúde mental inspirados no legado da doutora Nise da Silveira, nos quais se fazem presentes atividades artístico-culturais produzidas e socialmente compartilhadas no contexto da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, possibilitam ao longo do tempo a construção de novas identidades. A de artista, por exemplo. E isso reposiciona socialmente o sujeito em sofrimento psíquico.

Mas cabe pensar: o que significa e quais os limites deste alcance, quando essa nova condição adquirida continua circunscrita no âmbito da loucura? O Brasil é mundialmente conhecido pela grandeza de suas Coleções da Loucura. Temos no Rio de Janeiro o Museu de Imagens do Inconsciente na zona norte e o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea na zona oeste e, em São Paulo, em Franco da Rocha, o Museu de Arte Osório Cesar, para citar os principais, todos dentro de antigos hospícios.

O que o mundo conhece, no entanto, da existência objetiva de pessoas que de dentro da dor fazem nascer a poesia?

O que o Brasil, a Luta Antimanicomial, sabem sobre esses artistas que passam a desejar fazer parte do circuito artístico e cultural do país com ‘nome próprio’ reconhecido e sem a tarja social e política que os prende dentro do estigma da loucura?

GALERIA | Quem são os donos das vozes










Hamilton de Jesus Assunção, músico da banda Harmonia Enlouquece e ativista antimanicomial

Assunção é frequentador do Centro de Psiquiatria do Rio de Janeiro (CPRJ) e já compôs músicas como Quarto do Harmonia, Rema Rema e Deixa de Preconceito

Rogéria Barbosa, artista plástica no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, no bloco carnavalesco Zona Mental

Orlando Santos Baptista, músico no Cancioneiros do IPUB, grupo musical que reúne composições realizadas nos atendimentos de musicoterapia do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Cida Lopes, porta-bandeira do grupo Tá Pirando, Pirado, Pirou no Rio

Eneas Elpidio de Souza, músico e compositor no bloco Tá Pirando, Pirado, Pirou!, do Rio

Primeiro clube de ciências sobre saúde mental da Rede de Clubes de Ciência da Fundação Araucária, o Clube de Ciências Arte, Cultura e Saúde Mental fica em um colégio no bairro CIC, o mais populoso de Curitiba

Fabiane canta no evento Destrava, do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro, em setembro


Hamilton de Jesus Assunção, músico da banda Harmonia Enlouquece e ativista antimanicomial

Fotos: João Aranha/Divulgação

Esta condição de artista adquirida, conquistada, assumida, legitimada e validada, talvez fabricada, se custa alterar. Ou mesmo nunca será suficiente para modificar a posição social, via entrada no mundo do trabalho, no campo profissional artístico e cultural dos artistas participantes da pesquisa.

Nunca será suficiente para modificar de todo o status social de cada um deles, as condições materiais, objetivas, de sobrevivência. Mas oferece ao menos um lugar, um papel social.

Uma resposta possível às perguntas colocadas e valorizadas numa sociedade neoliberal, meritocrática e preconceituosa como a brasileira: ‘O que você faz?’, ‘Você trabalha com quê?’, ‘Fulano faz o quê?’, ‘Ah, é… E ele trabalha onde?’, ‘Ele estuda?’.

Poder responder a essas questões na condição autointitulada de artista é poder respirar com algum alívio de fundo social que não demora, no entanto, a se tornar ofegante e constrangedor toda vez que se impõe a necessidade de demorar-se nessa resposta.

Como discorrer sobre a posição social que se ocupa, nesse caso, fora dos pares, fora do espaço protegido da saúde mental antimanicomial?

Por que você entende que a arte, por si só, não é empoderadora?

FHV | Porque, por exemplo, no caso de uma banda que existe há mais de 20 anos em um hospital, onde o cara que canta e compõe é o único que canta e compõe… Por que não tem uma política pública permanente? Que ofereça, por exemplo, uma bolsa para essa pessoa que é artista faz mais de 20 anos, para que ele possa fazer oficinas de música com outros pacientes dentro do hospital? Não existem bolsas de pesquisa? Por que não para oficineiros?

A questão é que políticas públicas surgem depois que alguém consegue levar para agenda um determinado problema. Quem não está pautando a criação de políticas públicas favoráveis aos artistas da saúde mental?

Não temos política pública que valorize, reconheça, que garanta condições mais dignas e de sobrevivência para esses artistas. A luta antimanicômio é uma luta, né? Não é só uma bandeira.

Expressões como “fugiu do Caps”, “abriram as portas do Caps”, e etc. mostram que o brasileiro ainda não entendeu como funciona o atendimento de saúde mental pela Raps no SUS?

FHV | Sim. A portaria do Ministério da Saúde que define a Raps é de 2011 e ainda hoje não temos funcionando em todo o Brasil diversos pontos de atenção que compõem a Raps.

Ela prevê as Unidades de Acolhimento (UAs), ou seja, ‘residências temporárias para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, acompanhadas no Caps, em situação de vulnerabilidade social e/ou familiar e que demandem acolhimento terapêutico e protetivo’. Mas temos financiadas pelo governo federal cada vez mais comunidades terapêuticas, a grande maioria ligada à igreja e funcionando de maneira manicomial à base de isolamento social.

Para onde acabam sendo levadas pessoas em situação de rua quando o propósito é ‘higienizar’ a cidade?

Temos no Brasil cerca de 3 mil Caps e menos de 80 Centros de Convivência, Arte, Cultura e Economia Solidária, que também fazem parte da Raps.

Igualmente, temos poucos Serviços Residências Terapêuticos, os SRTs, “moradias inseridas na comunidade, destinada a acolher e cuidar das pessoas em sofrimento psíquico grave e persistente, egressas de internações psiquiátricas de longa permanência em hospitais psiquiátricos e hospitais de custódia, que não possuam suporte social e laços familiares.”

A ausência de uma Raps forte, consolidada, equipada, qualificada e com trabalhadores em condições justas de trabalho, em quantidade suficiente frente à demanda no território brasileiro, dificulta o entendimento da sociedade. Até mesmo o das próprias pessoas em sofrimento psíquico e de seus familiares.

Durante a 1ª Conferência Livre Nacional de Usuários da Raps, no ano passado, ocorreu de uma pessoa usuária da Raps de Curitiba afirmar diante da alta cúpula do Caps que ‘a pessoa entra sem norte e sai sem rumo do Caps’.

Como esperar do brasileiro entendimento quando o próprio Estado não assume o compromisso de garantir o direito previsto em lei de atendimento psicossocial humanizado, digno e compromissado com a emancipação das pessoas em sofrimento psíquico?

Quando se pensa pela possibilidade de uma ciência “objetiva”, em geral se recrimina o pesquisador que se envolve politicamente com o seu objeto de estudo. Como você percebe essa situação em você e nas ciências sociais: existem limites, existem éticas específicas, ou existem prioridades sociais a serem consideradas…?

FHV | A ciência não é isenta de valores. Em Honestidade intelectual, clássico de Max Weber para a sociologia, ele fala exatamente para que o pesquisador comunique aos seus leitores os seus pontos de vista e interesses pessoais e políticos a partir dos quais surgem seus próprios interesses de pesquisa.

Sim, existem limites e ética no fazer científico. Sigo Weber também em Ciência e Política como Vocação, que diz respeito aos papeis diferentes que devem ser assumidos. Na universidade um; na praça pública em luta, outro.

Dito isso, a partir do momento que o movimento da Luta Antimanicomial passa a integrar a minha pesquisa como objeto de análise, como campo de pesquisa, mas também como espaço de luta, de disputa e junto com os participantes da pesquisa, o meu posicionamento político, os meus interesses e os valores pessoais, coletivos e de luta, minhas prioridades subjetivas, sociais e políticas, também passam a fazer inevitavelmente parte da pesquisa, das minhas reflexões e escolhas.

Isso não é ocultado. Está lá no decorrer das páginas e em todos os demais meios de divulgação de pesquisa cientifica nos quais ela aparece apresentada, além dos espaços de disputa e construção de políticas públicas de saúde mental aos quais tenho me juntado ativamente, acompanhada de vários dos integrantes dessa pesquisa que se sentem inclusive pertencentes a ela.

Qual a sua expectativa sobre o clube de ciência? O que você avalia que crianças e adolescentes deveriam saber sobre saúde mental? Alguma história moveu você?

FHV | O Clube de Ciências Arte, Cultura e Saúde Mental se inspira no legado da doutora Nise da Silveira. Nasce de um desejo, que é pautar em Curitiba a aproximação da arte e da cultura na saúde mental.

Não temos em Curitiba os centros de convivência, arte, cultura e economia solidária de que fala o decreto da Raps. Temos uma Portaria lançado neste ano que prevê a implementação de centros de convivência que está aguardando a assinatura da ministra Nisia Trindade [do MS].

Poucos municípios contam com serviços públicos de saúde mental no interior dos quais arte e cultura se fazem presentes de maneira consolidada. A maioria deles não tem esses centros integrados à Raps.

Portanto, poder ter um clube de ciências com essa temática é a realização de um sonho. O objetivo específico dele é reconhecer, compreender, analisar e combater os condicionantes psicossociais e culturais de adoecimento psíquico assim como os processos de produção de estigmas sociais, de preconceito, de exclusão social e de patologização e medicalização da vida. Usamos metodologias das Ciências Sociais e Humanas.

As ações do clube de ciências que propusemos podem contribuir por meio de uma ciência cidadã para estreitar laços entre saúde e cultura e pautar políticas públicas emancipatórias de tratamento de saúde mental em Curitiba e no Paraná.

Pode ampliar a compreensão das desigualdades, violências e injustiças sociais buscando superá-las e inclusive percebendo nessas mazelas motivos de adoecimento psíquico.

Arrisca-se a avaliar por que o movimento antimanicomial é tão pequeno em Curitiba?

FHV | Considero que seja o conservadorismo político e social, mas não consigo avaliar muito bem. Porque São Paulo elege há décadas políticos assim para governador, mas o 18 de Maio [Dia Nacional da Luta Antimanicomial] toma a [Avenida] Paulista todos os anos. Talvez o tamanho da cidade de Curitiba e quem sabe até mesmo a formação social do povo curitibano…

Eu não sei bem responder esta questão. Porque temos em Curitiba entidades que abertamente advogam pela internação psiquiátrica e ainda por cima têm espaço na mídia.

Não se defende a Luta Antimanicomial a despeito de termos tido o caso Carrano [Austregésilo Carrano Bueno, autor do livro autobiográfico Canto dos Malditos (1990), que deu origem ao filme Bicho de Sete Cabeças (2000)], considerado um militante histórico da luta antimanicomial.
Leia o artigo “Arte, cultura e loucura como formas de (não) reconhecimento social e resistência política”, publicado no periódico Cadernos Brasileiros de Saúde Mental

https://ciencia.ufpr.br/portal/

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