DE VESSALIUS GUNTHER VON HAGENS: ANATOMIAS DE DIVERSOS MNDOS



Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Quando Andreas Vessalius (1514-1564) publicou em Bruxelas seu opus Magnum De Humani Corporis Fabrica (1543), a modernidade ainda não estava aberta para consumir o indivíduo que ele dissecava em posições melancólicas.

Cada arte que exibia uma faceta do humano, promovia um distanciamento do mundo que já parecia estranhamente antigo.

O corpo sagrado que deveria aguardar o fim dos tempos para reverenciar Deus era elegantemente devassado e exposto nos varais do tempo. Podíamos nos ver assim, nus de pele, em camadas até os ossos.

E a modernidade se definiu pelos esqueletos de Vessalius. A partir de então, nos afastamos da ancestral comunalidade e passamos à indiscreta individualidade. E com a individualidade, a soberania e o poder, dois atributos do egoísmo.

Medicina, ciência, filosofia, educação, estado, hierarquia, nação, cada elemento iluminado com cuidado e pressa. Em um século, no XIX, a colonização se alastrou por toda terra e definiu o mundo unidimensional. Criou o império cognitivo e ensinou o mundo sobre a centralização da vida.

E tudo começou com aqueles aparentemente inocentes esqueletos de Vessalius.


O século XX atingiu esse paroxismo, das massivas eliminações humanas, com as guerras industriais; animais, com a utilização de milhões de seres nos laboratórios farmacológicos; vegetais, com as crescentes devastações florestais onde ainda restavam árvores.

A racionalidade instrumental abriu espaço e tempo para novas e crescentes limitações da alma, promovendo festivais de divindades antropomórficas como avatares redentores, garantindo que o futuro poderia ainda ser salvo.

E o espetáculo se transformou numa forma peculiar de vida, com as tecnologias de estase disponíveis a todos. Um mundo barulhento nas redes e silencioso no corpo, que não aprendeu sobre a festa divina da vida. E esse corpo adoeceu de trabalho, de angústia, de desafeto, de solidão. O tempo foi exaurindo as possibilidades, o horizonte encolhendo, a natureza ofendida gritando para ouvidos moucos.

As partes que Vessalius desmembrou, com o pesar do tempo, foi separando a vida física, da mental e da espiritual, enquanto separava cada humano de cada humano e de cada ser vivo, numa bolha cada vez mais exígua, com pouco ar, pouca água, pouca vida. E a bolha parecia ao humano uma dádiva de realização e sua limitação lhe dizia que era conforto, que era ascensão, que era preservação.


Foi quando apareceu uma nova técnica de preservação: a plastinação.
Gunther von Hagens (1945) formou-se em medicina em 1973 na Universidade de Lubeck e em 1977 criou a técnica que o faria famoso e polêmico.

A plastinação, a sua inovadora técnica de preservação de tecidos biológicos que, resumidamente, inicialmente interrompe quimicamente a decomposição do cadáver e submete-o totalmente ou em partes à própria penetração e preenchimento por diversos polímeros que são capazes de assegurar: 1) rigidez, sem deformar as mais variadas estruturas biológicas; 2) coloração, que não será prejudicada pelo passar do tempo; e 3) maleabilidade, para manuseio e disposição artística do material preservado. Como última etapa do processo de plastinação, então, há a cura das peças recém-plastinadas, visando que as mesmas possuam um ótimo acabamento para utilização enquanto material de ensino, de revelação do corpo humano.

Esses corpos plastinados revelam bem mais do que imaginávamos sobre nós mesmos. Sem a modelação tocada por mãos humanas, os corpos de Hagen movem-se livres como fraturas expostas. Não à toa suas exposições sejam tão escandalosamente anunciadas como arte, como ciência, como a percepção de uma nova fronteira em que os limites entre o que é vivo e o que é morto, diante de suas esculturas, deixa de existir.

Aquele ser diante de nós, finalmente sem identidade, sem adereços, sem a suntuosa mistificação que marca o contemporâneo, somos eu e você, por sobre a pele da vaidade, exatamente igual.

Assim, descarnados, a soberania humana encontra um limite de exposição, sem os vestígios da morte, paralisados como volume especular, suspensos num éter primordial cujas lâminas sussurram segredos de um presente bem tátil pra ser ignorado.
Hagens, que retira a decisão de Deus acerca dos destinos do pó, investe sobre o corpo, preservando não nossa história, pois a autópsia seria inútil, tampouco a história do corpo, mas nos convida a fazer a autópsia de nossa própria existência, já que o significado de necropsia para o termo oculta um significado ulterior, de minucioso exame que fazemos sobre nós mesmos.

E ao nos vermos por nós mesmos ali diante de um corpo que estranhamente pode ser o nosso, expurgado de qualquer vestígio de identificação ou de identidade, de qualquer sinal de morte atestado pelos saprófagos, nos questionamos sobre esse engodo duradouro da crença numa individuação, pela qual a modernidade nos instilou, como uma parte do todo vital a se tornar progressivamente, ao longo dos últimos 500 anos, mais distinta e independente, crente de ser investida de um poder mágico que chamamos razão, poderia dominar a humanidade, a natureza, a vida.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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