PF ENCONTRA PROVAS DO PLANO PARA MATAR MARIELLE E EX-PM ADMITE PARTICIPAÇÃO NO CRIME

Em delação, ex-PM confessa que atuou na morte de Marielle Franco e garante que quem efetuou os disparos foi o ex-vizinho de Jair Bolsonaro. Polícia Federal encontrou provas do planejamento do assassinato da vereadora. Ex-bombeiro é preso em nova fase da investigação

Maxwell Simões Corrêa, o Suel. Ex-bombeiro mora em casa de luxo no Rio

O ministro da Justiça, Flávio Dino, divulgou nesta segunda-feira (24) avanços recentes na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes em 2018, no Rio de Janeiro.

A Polícia Federal passou a investigar o caso em fevereiro deste ano e, segundo Dino, fez uma “revisão” das provas obtidas até então pela Polícia Civil do Rio, além de coletar novos elementos. Dino também anunciou que um dos réus pela execução de Marielle, o ex-PM Élcio de Queiroz, firmou acordo de delação premiada em que detalhou a própria participação e a de outros envolvidos no crime.

Com base nessa delação, a Polícia Federal e o Ministério Público do Rio prenderam nesta segunda-feira (24) o ex-bombeiro Maxwell Corrêa, o “Suel”. Ele já tinha sido condenado por atrapalhar as investigações, mas cumpria pena em regime aberto.

A DELAÇÃO DO EX-PM

Segundo o ministro Flávio Dino, a delação de Élcio foi colhida há cerca de “15, 20 dias” e já foi homologada pela Justiça. No depoimento, Élcio Queiroz confessou que dirigia o carro que perseguiu Marielle Franco – e disse que foi Ronnie Lessa quem atirou contra as vítimas.

“As provas colhidas e reanalisadas pela Polícia Federal de fevereiro pra cá confirmaram, de modo inequívoco, a participação do senhor Élcio e do senhor Ronnie, e isso conduziu à delação do Élcio”, disse Flávio Dino.

Dino também confirmou que Élcio receberá benefícios em razão do acordo de delação premiada, mas seguirá preso. “O instituto da colaboração premiada pressupõe o acordo [benéfico ao delator]. Claro que houve. As cláusulas ainda permanecem sob sigilo judicial, mas posso afirmar que o senhor Élcio continuará preso em regime fechado. Inclusive, onde se encontra”, afirmou.

EX-BOMBEIRO PRESO

A Polícia Federal prendeu o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, o Suel. Esta é a primeira operação desde o início de 2023, quando a PF assumiu a investigação dos homicídios da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Suel foi condenado em 2021 a quatro anos de prisão por atrapalhar as investigações, mas cumpria a pena em regime aberto. O ex-bombeiro tinha sido preso em junho de 2020 durante a Operação Submersos II, e já é réu neste por processo receptação, porque recebeu o carro usado no crime segundo o MP e a PF.

De acordo com as investigações, o ex-bombeiro participou de campanas para o planejamento do assassinato da vereadora. Ele atuava na “vigilância” e no “acompanhamento” da vereadora Marielle Franco.

“Já poderia adiantar que ele [Suel] participou de ações de vigilância e acompanhamento da ex-vereadora e apoio logístico com os demais [participantes] de toda essa cadeia criminosa. Ele teve papel importante neste contexto inteiro. Antes e depois [do crime]”, afirmou o delegado da PF.

A vereadora Marielle Franco (PSOL), de 38 anos, foi assassinada na noite do dia 14 de março, dentro de seu carro, no Estácio, na região norte do Rio. Ela foi atingida por quatro disparos no rosto.
RONNIE LESSA

Antes do assassinato de Marielle Franco, o policial Ronnie Lessa jamais havia sido investigado. Embora os corredores das delegacias conhecessem a fama do sargento reformado, associada a crimes de mando pela eficiência no gatilho e pela frieza na ação, Lessa era, até então, um ficha limpa.

Egresso dos quadros do Exército, foi incorporado à Polícia Militar do Rio em 1992 até virar adido da Polícia Civil, trabalhando na extinta Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (DRAE), com a mesma função da atual Desarme, na Delegacia de Repressão à Roubo de Cargas (DRFC) e na extinta Divisão de Capturas da Polinter Sul.

Lessa, como outros adidos (PMs acrescentados aos quadros da Polícia Civil), conhecia mais das ruas do que qualquer policial civil. Logo, destacou-se e ganhou respeito pela agilidade e pela coragem na solução dos casos.

Esta fama, segundo os bastidores da polícia, chegou aos ouvidos do contraventor Rogério Andrade, na época cada vez mais ocupado em fortalecer o seu exército numa sangrenta disputa territorial com o também contraventor Fernando Iggnácio de Miranda. Em jogo, o legado do bicheiro Castor de Andrade, morto em 1997.

Arregimentado por Andrade, Lessa não demorou a crescer na organização e ocupar o destacado posto de homem de confiança do chefe. Até que, em abril de 2010, a explosão de uma bomba no carro do bicheiro não apenas matou o filho dele, Diogo Andrade, de 17 anos, como fulminou a credibilidade de Lessa junto ao chefe, por não conseguir protegê-lo, assim como sua família. O guarda-costa e exímio atirador foi incapaz de evitar a morte do jovem.

Um laudo do Esquadrão Antibombas da Polícia Civil revelou que para explodir o Toyota Corolla blindado de Andrade foi usado um dispositivo acionado à distância por meio de um telefone celular.

LESSA E JAIR BOLSONARO

Lessa é ex-vizinho de Jair Bolsonaro (PL) e Carlos Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra. O delegado Giniton Lages admitiu que a filha de Lessa namorou com Jair Renan, o filho mais novo do ex-presidente.

Mas a ligação entre Lessa e Bolsonaro é muito mais antiga e começa nos anos 1990, como apurou o jornalista Moisés Mendes em reportagem investigativa. Relembre:

Ronnie Lessa aparece na vida de Jair Bolsonaro quando do famoso roubo da moto do ex-presidente (na época deputado), em 1995. Bolsonaro, que recomenda a todo mundo que ande armado, entregou a arma e a moto ao ladrão.

É Lessa, então cabo da PM (e que depois vira vizinho de Bolsonaro na Barra da Tijuca), quem devolve a moto ao então tenente. O resto já se sabe, mas há um detalhe nunca esclarecido: a morte do bandido.

O roubo de uma moto e de uma pistola do presidente Jair Bolsonaro, em 1995, mobilizou uma grande parte da polícia do Rio. O crime e suas consequências simbolizam vários problemas da segurança pública no Brasil.

Além disso, essa história se cruza com a do sargento Ronnie Lessa, apontado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio) como assassino da vereadora Marielle Franco, morta a tiros em 2018.

Em 2018, o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro falou do assalto numa entrevista para o “Roda Viva”, programa da TV Cultura.

“Eu fui assaltado, sim. Eu estava numa motocicleta, fui rendido. Os dois caras, um desceu e pegou por trás o registro. Dois dias depois, juntamente com o nono batalhão da Polícia Militar, nós recuperamos a arma e a motocicleta e, por coincidência, o dono da favela de Acari, onde foi pega, foi pego lá. Lá estava lá. Ele apareceu morto um tempo depois, rápido. Eu não matei ninguém, nem fui atrás de ninguém. Mas aconteceu”, afirmou.

Algumas testemunhas e jornais da época, porém, trazem detalhes não contados por Bolsonaro. Ele foi assaltado no dia 4 de julho de 1995 em Vila Isabel, zona norte do Rio. Bolsonaro, então deputado federal, foi rendido por dois criminosos e entregou, sem reagir, uma moto modelo XLX 350 e uma pistola Glock calibre 380.

Diferentes jornais publicaram notícias sobre o episódio. Para a Tribuna da Imprensa, Bolsonaro disse: “Mesmo armado, me senti indefeso”. Ele registrou o assalto na 20ª DP (Delegacia de Polícia), no bairro do Grajaú, também na zona norte. Em seguida, saiu com dois grupos de policiais em direção ao Jacarezinho, uma outra favela na mesma região.

Na sequência, mobilizou a Secretaria de Segurança Pública, que colocou cerca de 50 policiais civis e militares para tentar ajudá-lo a resgatar os pertences. No entanto, a operação acabou sem sucesso naquele dia.

A moto e a pistola de Bolsonaro só retornaram para sua casa porque um traficante em Acari tomou conhecimento do assalto e soube que os pertences do então deputado estavam lá em Acari. Quem conta essa história é o ativista de direitos humanos Wanderley Cunha, o “Deley de Acari”, que diz ter testemunhado todo o episódio.

“Eu era vice-presidente da associação de moradores do bairro Acari e o rapaz que era chefe do tráfico na favela, Jorge Luís, procurou a presidente da associação de moradores da favela próxima, perguntando se eu conhecia o capitão Bolsonaro, porque havia aparecido uma moto dele e uma pistola, que tinham sido roubadas por um rapaz da favela. E se era possível devolver”, afirma.

“Primeiro, porque ele temia que, com a visibilidade que teve a matéria no jornal na região, da TV, se descobrisse que a moto e a pistola tinham ido parar na favela e houvesse uma ocupação do Exército. Segundo que a moto foi oferecida para ele pelo rapaz que roubou e ele não tinha interesse porque era uma moto velha, com pneu careca”, contou Deley.

Deley disse que, por causa da militância política, ele conhecia integrantes de partidos, pessoas na Câmara Municipal e até alguns vereadores. Então ele resolveu fazer contato com o 9º Batalhão de Polícia Militar, em Rocha Miranda, e com o gabinete da então vereadora Rogéria Bolsonaro, à época mulher de Bolsonaro, para negociar a devolução.

“Falei da intenção de ser devolvida a moto. Foi marcada a presença dos moradores nesse contato com o comandante do 9º batalhão, o coronel Alves. Ele esteve na favela, com dois carros descaracterizados. Eu pessoalmente fiquei na praça Roberto Carlos, era tipo 10h30, 11h, mais ou menos”, revela Deley. “O coronel Alves saiu do carro descaracterizado, com o motorista no carro. Ele e o capitão Décio, que era chefe de operações. Enfim, ele abriu o bagageiro, viu a pistola, viu a moto. O capitão Décio montou na moto. O coronel entrou no carro e foram embora”, diz Deley.

Naquela semana, o jornal O Globo publicou que “a dica do paradeiro dos pertences do deputado foi passada por um informante”. Já o jornal A Notícia chegou a relatar que os itens roubados haviam sido recuperados mediante intenso confronto. A versão de que existiu um confronto na entrega dos pertences de Bolsonaro irritou Jorge Luís, o chefe do tráfico de Acari. O traficante foi tirar satisfação com Deley.

“O Jorge Luís ficou muito chateado, pressionou a mim e chamou a mim. Eu falei para ele que eu poderia ligar para o gabinete da vereadora, falar com o capitão novamente”, conta Deley. “Foi feito, eu liguei, falei com ele, expliquei como é que tinha sido devolvida a moto realmente, que não havia tido nenhuma troca de tiro. Ele agradeceu, perguntou se podia fazer campanha na favela”, conta Deley.

No entanto, a Secretaria de Segurança daquela época continuou fazendo operações até prender Jorge Luís, o que ocorreu oito meses depois, na Bahia. Logo depois de ser preso, Jorge Luís foi encontrado morto dentro da cela em uma delegacia do Rio, para onde tinha sido transferido. A coluna tentou acesso ao inquérito do caso, mas a polícia do Rio não o forneceu.

Deley também conta que, posteriormente, o coronel Alves relatou que os pertences de Bolsonaro foram devolvidos a ele por um cabo chamado Lessa.

“Vários jornais da época saíram que o capitão Bolsonaro teria pego a moto no pátio do 9º batalhão, em Rocha Miranda. Eu vi algumas matérias antigas de jornal nessa época. A informação que eu tenho é diferente dessa. É que o cabo Lessa teria levado a moto na casa do capitão Bolsonaro na Vila Isabel.”

Segundo o ativista, o cabo Lessa era Ronnie Lessa. De acordo com dados da Polícia Militar, Lessa era soldado do Bope em 1995, mas Deley afirma que o coronel Alves relatou assim a presença dele naquela época. “A informação dada por ele é que o cabo Lessa teria levado a moto, entregue a moto na casa de Bolsonaro na rua Torres Homem. O que contrasta com a informação que li no jornal de que o capitão Bolsonaro teria recuperado a moto, teria pego a moto no pátio do nono batalhão”, informou.

Ronnie Lessa não quis conceder entrevista. No dia 5 de setembro, sua defesa foi procurada para falar sobre esse episódio da devolução da moto e da arma. O que o advogado disse, porém, é que levaria um mês para conseguir acessar o cliente na prisão em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Por isso, não seria possível ter uma resposta antes do lançamento do podcast.

O presidente Jair Bolsonaro também foi questionado se se recordava de Ronnie Lessa ter participado da devolução dos pertences em 1995. A assessoria do presidente enviou uma nota que diz apenas que “sobre a devolução de bens roubados do presidente Jair Bolsonaro há mais de 20 anos, não há muito o que comentar”. “Os bens foram recuperados e devolvidos pela polícia”, afirma o texto.

As vidas de Bolsonaro e Ronnie Lessa se cruzaram outras vezes. Os dois, porém, costumam dizer que mal se conhecem. Eles eram vizinhos no condomínio Vivendas da Barra, local onde o presidente morava até o fim de 2018, antes da posse na Presidência.

Numa entrevista para as jornalistas Marina Lang e Sofia Cerqueira, publicada na revista Veja, em março de 2022, Ronnie Lessa admitiu que teve ajuda de Bolsonaro durante um tratamento médico para colocar uma prótese, em 2009. Lessa perdeu uma perna após um atentado, quando ele ainda estava na polícia.

Ele disse ter sido atendido pela ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação), da qual Bolsonaro era patrono. “A ABBR tem um convênio não é com o Ronnie Lessa, com o Jair Bolsonaro, não. É com a polícia, tanto com a Polícia Civil como a Polícia Militar. Todos têm que ir pra lá. E o Bolsonaro por si só, como é palanque para ele, é uma questão. Ele gosta de ajudar a polícia porque na verdade é quem botou ele no poder. Então, se ele sabe de uma pessoa, ele vai interferir. Mas, na verdade, ele não estava ajudando o Ronnie, ele estava ajudando um policial que perdeu a perna”, afirmou Lessa.

Lessa nunca ganhou uma homenagem dos filhos de Bolsonaro. No entanto, recebeu de outros políticos e fez parte desse momento de muita violência no Rio, nos anos 1990. Ele serviu no 9º Batalhão, de Rocha Miranda, com um grupo que era chamado de Cavalos Corredores, porque corriam atirando pelas ruas da favela.

Entre 1997 e 1999, também se envolveu em uma série de mortes durante operações na comunidade e recebeu a chamada “gratificação faroeste”, um benefício no salário por produtividade em operações policiais violentas.

Em 1999, foi para outro batalhão e seguiu carreira na polícia até acabar preso pela morte de Marielle Franco, um ano depois do crime. Em sua defesa pela acusação de assassinato, ele costuma negar que tenha participado do crime.

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