A NARRATIVA AMERICANA NÃO CONTA A HISTÓRIA DA VENEZUELA


Lula e Maduro (Imagem: Antônio Cruz | ABr)

Anderson Pires*

É verdade que a pobreza na Venezuela atingiu níveis absurdos. A crise econômica que o país vive já tem quase uma década. Pessoas morrem de fome, muitos migram para países vizinhos. São muitos os venezuelanos nos sinais de trânsito, no Brasil, pedindo ajuda ao menos para comer. Diversas violências são praticadas naquele país. Tudo isso é realidade. Porém, essa situação e a atual conjuntura política na Venezuela decorrem de uma narrativa que serve a interesses externos, nomeadamente aos Estados Unidos da América.

A Venezuela foi a principal pauta da semana. A afirmação do presidente Lula de que construíram uma narrativa de falta de democracia no país inflamou a imprensa e, até pessoas de viés progressista adotaram a versão disseminada pelos principais veículos de comunicação do Brasil como verdade absoluta.

O fato de políticos identificados como de esquerda, a exemplo do presidente do Chile, Gabriel Boric, fazerem críticas à fala do presidente Lula, serviu de combustível para a Globo e seus colegas do mercado da comunicação comemorarem e reforçarem a narrativa de que existe uma ditadura na Venezuela.

Pois é, conforme a versão hegemônica, a Venezuela vive uma ditadura e isso se pauta em duas questões que são sempre apresentadas de forma simplista. A primeira afirma que Maduro manipulou as eleições, já que os partidários do MUD se recusaram a participar das eleições e dois dos seus líderes estavam presos e não poderiam ser candidatos. A segunda é que a crise econômica é decorrente da primeira.

Aparentemente, parece um cenário óbvio de uso do poder por um político que quer perpetuar-se no comando do país. Mas o que parece ser uma montanha de justificativas, muitas vezes, esconde razões históricas que podem mudar narrativas e aparentes verdades.

Vamos ter que voltar ao início do século XX, quando em 1908 foi instalada uma ditadura na Venezuela, que durou 50 anos. Em 1958, com o declínio do ditador Marcos Pérez Jiménez, foi firmado o Pacto de Punto Fijo por três partidos que faziam oposição ao ditador, a Ação Democrática (AD), a Junta Patriótica e o Partido Comunista da Venezuela (PCV).

Uma junta provisória assumiu o comando da Venezuela e logo depois convocou eleições que elegeram o presidente Rómulo Betancourt (AD). Logo após, os comunistas foram excluídos da participação no governo e o Pacto de Punto Fijo durou por 40 anos, sob a condução da AD e da Junta Patriótica.

Após crises, atrelamento aos interesses americanos, corrupção desenfreada e empobrecimento da população, em 1998, Hugo Chavez foi eleito presidente da Venezuela com 56% dos votos. Em seguida, promoveu a elaboração de uma nova Constituição e mudanças na Suprema Corte, que foi ampliada de 20 para 32 juízes. Para os conservadores que perderam o poder e seus apoiadores internacionais, essa medidas seriam ditatoriais. Porém, a constituinte que permitiu as mudanças foi aprovada por 60% da população. Se desagradou aos que se opunham a Chavez, interna e externamente, paciência. Na democracia, a vontade popular através do voto deve ser respeitada, seja nos Estados Unidos ou na Venezuela. Vale lembrar que nos Estados Unidos o mais votado nem sempre é o eleito, mas são as regras daquele país e todos respeitam.


Mas não foi isso que se verificou. Ao contrário do que se poderia imaginar, aos partidos que perderam a eleição para Chavez, juntaram-se os Estados Unidos e até os meios de comunicação brasileiros para atacarem as decisões tomadas com aval do povo venezuelano de forma sistemática. O mesmo discurso que se faz hoje sobre a falta de democracia e o respeito aos direitos humanos já existia em 1999. Havia uma intenção clara de desestabilizar o governo de esquerda que se contrapunha a quase um século de subordinação aos americanos.

O apoio popular que Hugo Chavez construiu teve como base a utilização dos recursos oriundos da exportação de petróleo destinados a políticas públicas de apoio aos mais pobres. Apesar de reduzir a pobreza extrema de cerca de 50% da população para 23%, políticos de direita de diversos países e até a imprensa brasileira sempre fizeram críticas e ataques ao governo venezuelano. A narrativa do ditador populista sempre existiu, mesmo com referendo do voto e melhorias sociais. Qual o motivo disso? Chavez se posicionava publicamente contra o imperialismo americano e contra a submissão de todos esses que lhe criticavam.



A Venezuela, além de estar na América Latina, tinha características inaceitáveis pelos Estados Unidos e seus apoiadores: as maiores reservas de petróleo do mundo e um governo de esquerda, que ousava garantir políticas públicas destinadas aos mais pobres. Estranhamente, o que deveria ser motivo de orgulho para todas as nações subdesenvolvidas e exploradas recebeu sempre o pior tratamento nos meios de comunicação brasileiros.

O incômodo gerado por Chavez e Maduro sempre foi muito grande. Porém, nunca se viu algo parecido em relação à Arábia Saudita, ao Qatar ou aos Emirados Árabes, países governados por ditadores, com regimes de escravidão, violência de gênero, assassinato a jornalistas e cujos dogmas religiosos respondem por brutalidades inaceitáveis. A diferença fundamental reside no fato de esses países atenderem interesses dos Estados Unidos, portanto, em comunhão com os que acreditam que a exploração capitalista está acima de tudo. Quem critica com mais veemência o regime da Venezuela com Chavez e Maduro são os mesmos que tiram fotos em Dubai e exaltam as maravilhas construídas por ditaduras, nas redes sociais.


Os ataques à Venezuela passaram a ser mais intensos em 2013. Não por coincidência, outros países, como o próprio Brasil, viraram alvo da política predatória de Barak Obama, que estabeleceu como tática corroer as economias emergentes das nações que não estivessem alinhadas com seus interesses e que fossem grandes produtoras de petróleo.


Além da instabilidade criada no Norte da África e Oriente Médio, desde 2010, com a Primavera Árabe, Obama produziu uma política de desvalorização do petróleo com aumento da produção por parte dos seus aliados e liberação desenfreada do óleo de xisto, mesmo ciente do impacto ambiental muito maior. Com isso, o barril caiu de cerca de US$ 120 para menos de US$ 50. Venezuela, Rússia e Brasil tiveram perdas enormes na sua indústria petroleira.

Foi essa tática que serviu para consolidar a versão de que Dilma Rousseff teria quebrado a Petrobras, junto com movimentos financiados por grupos internacionais. Por conseguinte, a ação da Lava Jato consolidou a ideia de que o motivo da quebradeira seria fruto da corrupção generalizada produzida pelo PT e por seus aliados.

No caso do Brasil, a economia sofreu bastante, mas o maior impacto foi político. Existia uma tentativa clara de gerar uma conjuntura capaz de influenciar o resultado eleitoral e impedir a reeleição de Dilma Rousseff. A vitória sobre Aécio Neves foi apertada, o resultado foi questionado e, mesmo eleita de forma democrática, e comprovada a inexistência de fraudes, os ataques não cessaram. Ao contrário, viabilizaram a construção de uma farsa que justificasse um golpe, com o uso do mecanismo do impeachment. Essa foi a narrativa que vigorou. Os mesmos que sempre acusaram de antidemocráticos os governos de esquerda da Venezuela, reforçaram o discurso que serviu para o golpe que cassou a Presidente Dilma.

No caso da Venezuela o impacto foi muitas vezes maior, porque o país dependia quase que integralmente dos recursos oriundos do petróleo para manter todas as políticas sociais que mudaram radicalmente o estado de pobreza que vigorou por séculos. Mesmo assim, Nicolás Maduro conseguiu se eleger presidente numa votação apertada contra Henrique Caprilles, em 2013. E, da mesma forma que, no Brasil, o candidato derrotado não aceitou o resultado e quis impor a sua vontade. Porém, lá na Venezuela esse ataque ao resultado eleitoral foi tratado com rigor e quem tentou deslegitimar as eleições democráticas foi preso. Para a imprensa de direita brasileira foi um ato ditatorial. Posteriormente, seria conivente com a mesma conduta adotada por Aécio Neves, em 2014.

Mas nada é tão ruim que não possa piorar. Já que não conseguiram derrotar Maduro nas eleições, mesmo após a crise criada com a queda brusca do preço do petróleo, o novo presidente americano, Donald Trump, em 2017, resolveu promover embargos econômicos contra a Venezuela. Pouco importava ter havido uma eleição que elegeu Maduro, se os americanos dizem que ele é um ditador, ele será tratado como tal.

Se por consequência a população passar fome, sofrer com o desabastecimento e o clima de caos isso é mero detalhe. Morte prematura de pobre sempre foi um ponto insignificante quando quem promove a morte é um legítimo representante do capitalismo. Afinal, desigualdade e fome são premissas da exploração. Ao capital tudo é permitido.

Convém observar que, depois de ter reduzido a pobreza para apenas 23% da população, como já foi dito, esse índice saltou para mais de 60% e, mesmo assim, o presidente se mostrava competitivo eleitoralmente. O que proporcionava isso? Chavez e Maduro nunca usaram de eufemismos nos embates para denunciar os ataques que a Venezuela sofreu dos Estados Unidos e seus aliados. Dessa forma, mesmo com a situação de miséria que passava o país, a disputa eleitoral não seria fácil para a direita. Os pobres sabiam o que os Estados Unidos fizeram e lembravam de como era a vida antes de Hugo Chavez.

Dessa forma, a direita apelou para mais uma manobra nas eleições de 2018. Os principais opositores de Maduro resolveram não participar. Previamente, disseram que qualquer resultado não seria aceito, visto que dois dos seus líderes estavam presos e não poderiam disputar a eleição. Mas eles estavam presos por ataques à democracia, Caprilles, inclusive, foi condenado por não aceitar o resultado eleitoral de 2013. Os que o apoiavam queriam que ele fosse solto. Fica a questão: crime contra a democracia não é algo grave? Só é crime se for cometido pela esquerda?

Com o boicote promovido pelos opositores de Maduro às eleições de 2018, ficou fácil a reeleição para ele. O presidente venezuelano foi reeleito com 68% dos votos, numa disputa marcada por grande abstenção. Diante da possibilidade de mais uma derrota, a direita na Venezuela que estava dividida, optou por gerar mais um fato político e manter o processo de desestabilização do Governo, com o apoio dos Estados Unidos e a manutenção de embargos econômicos.

Não me recordo de nenhum dos críticos que acusam Maduro de ditador pedir com veemência pelo fim dos embargos que geraram uma crise econômica sem precedentes na Venezuela, com inflação descontrolada, pessoas migrando para outros países e mortes por fome. Se o problema era de caráter humanitário, independentemente dos questionamentos jurídicos em relação à eleição, seria coerente defender o fim das retaliações comerciais.

A considerar a lógica da direita, se a regra adotada estabelece que a democracia vale mais do que as vidas dos mais pobres, todos os países com ditaduras teriam que sofrer sanções iguais, o que não é verdade. Existem muitas ditaduras que mantêm relações comerciais com os Estados Unidos e os mesmos jornalistas que chamam Maduro de ditador seguem calados.

Depois de ataques de toda sorte à Venezuela, com manipulação no preço do petróleo, patrocínio de movimentos golpistas e embargos econômicos, mesmo assim, a direita teve sucessivas derrotas para a presidência. Mas, apesar de afirmarem viver numa ditadura, a direita ganhou as eleições para Assembleia Nacional (AN) desde 2015. Em 2019, o deputado Juan Guaidó foi eleito presidente da AN e na sequência, se autoproclamou presidente da república, por não aceitar o resultado da eleição para presidente.

Num paralelo com o Brasil, seria como se Arthur Lira resolvesse se intitular presidente do país, já que a oposição é maioria na Câmara dos Deputados e o derrotado nas eleições presidenciais, Jair Bolsonaro, não reconhece a vitória de Lula. Parece esdrúxulo quando transportamos essa realidade para perto de nós, mas essa versão é sonegada pelos que tratam Maduro como ditador e corroboraram com todas as manobras feitas pelos Estados Unidos com o intuito de manter o seu controle absoluto na América Latina, mesmo que isso tenha causado tantos sofrimentos aos mais pobres, na Venezuela.

Narrativas que atendem a interesses econômicos e políticos dos mais poderosos não faltam na história. Registros de episódios de manipulação para manutenção do poder têm a idade do mundo. Ou seja, sempre existiram. Roma perseguiu os cristãos e depois se apropriou do cristianismo como forma de justificar a sua expansão. Hitler apelou para a imagem do líder popular, amante das artes que defendia os interesses do seu povo para produzir guerras. O Brasil dizimou o Paraguai e durante muito tempo vigorou a narrativa de defesa patriótica, quando na verdade estava a serviço dos interesses imperialistas da Inglaterra.

A narrativa a que Lula fez menção em seu discurso, que teria desagradado aos que advogam os interesses imperialistas, foi construída com base na versão americana que sempre vigorou, mesmo antes de Nicolás Maduro se tornar presidente. É a mesma narrativa que tratava a eleição democrática de Hugo Chavez como populista e autoritária. Essa perspectiva que diz defender a democracia é a mesma que serve ao bolsonarismo, quando defende fechamento do Supremo e desrespeito à Constituição. A realidade da Venezuela é triste, mas o casuísmo e a manipulação histórica servem para construir narrativas, que atendem apenas aos interesses de quem sempre explorou e promoveu a desigualdade.

*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.

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