GOLPISMO À ESPREITA

“Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE”, declarou Felipe Marcelo Gimenez, procurador do estado de Mato Grosso, durante uma entrevista a uma rádio de Campo Grande, em 10 de outubro de 2022. O vídeo com as infundadas alegações de fraude circulou intensamente nos grupos bolsonaristas desde então, mas foi somente em 10 de janeiro deste ano que ele viralizou nas redes sociais.

O motivo? A gravação foi compartilhada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, exatamente dois dias após seus radicais devotos devastarem as sedes dos Três Poderes em Brasília, deixando para trás um gigantesco rastro de destruição.

Na quarta-feira 26, Bolsonaro disse à Polícia Federal que a publicação foi acidental. Para escapar da responsabilização pelos atos golpistas que tem incentivado desde que Lula recuperou os direitos políticos, o ex-capitão alegou estar “sob o efeito de remédios” quando compartilhou a fake news, e acrescentou ter deletado a publicação assim que notou o “equívoco”. O gesto de covardia virou motivo de galhofa nas redes sociais.

Rapidamente, a expressão “foi mal, estava doidão” foi parar nos assuntos mais comentados do Twitter. Houve quem visse, no episódio, “mais um efeito colateral do Zolpidem”. No caso, a incitação de golpes de Estado.

O uso do medicamento indutor de sono talvez explique por que Bolsonaro demorou três horas para apagar a publicação. Mas como explicar todas as ocasiões em que o então presidente incitou abertamente um golpe, inclusive nos festejos de 7 de Setembro?

O capitão parecia bem acordado quando teceu loas ao golpe de 1964, descrito como um momento em que “o bem venceu o mal”, e ainda profetizou: “a história pode se repetir”.

Engana-se, porém, quem acredita que o bolsonarismo está morto. Recentemente, a consultoria Quaest revelou que o Índice de Popularidade Digital de Bolsonaro teve um expressivo crescimento quando ele retornou ao Brasil, em 30 de março, após as prolongadas férias na Flórida.

Além disso, a indústria da mentira pode ter perdido o financiamento público, mas segue ativa. Desde os atos de 8 de janeiro, ela difunde a estapafúrdia tese de que Lula facilitou a tomada da Praça dos Três Poderes com o objetivo de angariar apoio para governar. Os atos de vandalismo, emendam os pinóquios profissionais, seriam obra de “petistas infiltrados”.

Sim, eu sei. É preciso ser muito néscio para acreditar nesse conto da carochinha. Mas não foi exatamente a nata da intelectualidade que devastou Brasília naquela fatídica tarde de domingo, e sim brasileiros que se informam pelas redes sociais e acreditam piamente em um complô a reunir a mídia, o Judiciário, a China, a França de Emmanuel Macron, a Organização Mundial da Saúde, as Nações Unidas e o papa Francisco, entre outros, só para derrotar o ex-capitão e ameaçar a sacrossanta família cristã brasileira.

Confiantes no baixo QI dos devotos de Bolsonaro, parlamentares que deram sustentação ao seu governo agora sonham em manipular a CPI mista dos Atos Golpistas para emplacar a fantasiosa narrativa. O governo Lula, até há pouco, era contra a comissão. Achava que ela tiraria o foco do essencial, o debate econômico, e remexeria numa visão aparentemente sacramentada: a de que houve uma tentativa de golpe em janeiro por fiéis do ex-capitão. Mas, como observa André Barrocal na reportagem de capa de CartaCapital desta semana, essa visão não está tão consolidada assim: “Em janeiro, 55% viam o dedo de Bolsonaro nos atos (pesquisa Datafolha). Em fevereiro, 51% (Quaest). Em março, 49% (Ipec). Passa o tempo, cai a associação. Que acontecerá se os bolsonaristas tiverem palanque para defender a ‘alucinação’ de que o governo é o culpado?”

A gestão Lula mudou de posição sobre a CPI um dia após virem a público, via CNN Brasil, imagens de câmeras de segurança do Palácio do Planalto, nas quais o general Gonçalves Dias, chefe do GSI até 19 de abril, aparece na porta do gabinete presidencial diante de alguns invasores, em atitude pouco firme.

Diante do fato, o ministro da articulação política, Alexandre Padilha, pediu a líderes governistas no Congresso que mergulhassem nas negociações pela presidência e relatoria da comissão.

O tiro pode até sair pela culatra para os bolsonaristas, sobretudo se a CPI concluir que Bolsonaro é o autor intelectual do golpe fracassado. Mais difícil será controlar a narrativa nas redes sociais, uma vez que a turma tem expertise na arte de usar imagens e declarações fora de contexto, distorcendo a realidade para manter sua base unida e mobilizada. E não faltarão parlamentares dispostos a fazer o serviço sujo de produzir conteúdo para a indústria da mentira, a começar pelos filhos do ex-presidente, Flávio e Eduardo, senador e deputado federal, respectivamente.

Nessa batalha, o jornalismo será indispensável para reestabelecer a verdade. CartaCapital jamais se furtou a cumprir esse papel, antes mesmo de Bolsonaro vencer as eleições de 2018.


Enquanto setores da mídia perdiam-se na “escolha difícil” entre um democrata de esquerda e um adulador de torturadores, sempre alertamos para o risco que o ex-capitão representava ao Brasil. E, desde o primeiro momento, nos colocamos na firme oposição a um governo autoritário, negacionista e obscurantista.

Nos orgulhamos dessa posição, mas ela nos cobrou um preço caro. CartaCapital foi sistematicamente boicotada pelo governo Bolsonaro, como já vinha sendo durante a gestão de Michel Temer, o surfista do golpe de 2016. Nos últimos sete anos, a revista foi completamente excluída da divisão de publicidade oficial e ainda sofreu com a pressão estatal para que empresas privadas deixassem de anunciar em nossas páginas.

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Rodrigo Martins
CartaCapital



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