CONSEGUIMOS OS DADOS QUE O EXÉRCITO NÃO TEM

Nas duas últimas semanas, cenas grotescas de manifestações golpistas tomaram as redes sociais. Muitas viraram memes. Seriam cômicas se não fossem – todas – trágicas. Um dos casos, você deve ter visto, aconteceu há poucos dias quando “manifestantes” atacaram policiais rodoviários federais a pedradas e tiros, ferindo três agentes.

Você reparou onde isso aconteceu? Foi no sul do Pará, na BR-163, uma das principais estradas que cortam a Amazônia Legal.

Antes de seguir em frente, queria retomar com você alguns dados. Em 2018, havia pouco mais de 100 mil pessoas registradas como caçadores, atiradores ou colecionadores de armas, os CACs. Esse número hoje é de mais de 670 mil pessoas. Você sabe qual é o efetivo da Polícia Militar na ativa no Brasil hoje? 406 mil policiais. Forças Armadas? 360 mil.

Há pouco tempo, o número de armas registradas por CACs ultrapassou 1 milhão. Até julho, eram 434.715 fuzis nas mãos de CACs. E quem são essas pessoas? Não sabemos. O Exército não divulga esses dados, e o controle sobre quem pode se registrar como CAC foi se flexibilizando progressivamente durante os quatro anos do governo Bolsonaro.

A realidade é que o Brasil se armou nos últimos quatro anos e a sociedade sequer tem a dimensão disso. O Exército, que deveria ter o controle preciso desses dados, tornou-se cúmplice da política de Bolsonaro. Nem as polícias têm acesso a um banco unificado sobre armas no Brasil.

Para o Intercept, no entanto, essa dificuldade nunca foi impeditiva. Buscamos muitos caminhos para esclarecer o cenário do armamento de civis no país, até que encontramos um, e seus resultados começaram a ser revelados aos nossos leitores na última semana.

Há mais de seis meses, venho levantando dados sobre os clubes de tiro abertos na Amazônia Legal nos últimos anos. Foi uma pesquisa lenta, trabalhosa. Depois de levantar todos os CNPJ ativos e a data de abertura de cada um deles – informação que o Exército afirmou não ter –, descobrimos que alguns clubes de tiro simplesmente não estavam nos registros oficiais. A invisibilidade aumenta porque nem todos os endereços são fáceis de localizar no mapa, trabalho que fizemos com ajuda de georreferenciadores e contato direto com os responsáveis pelos estabelecimentos. Localizamos no mapa um por um e revelamos que a expansão dos clubes acontece principalmente em torno do chamado “arco do desmatamento”.

A região da Amazônia Legal levou 43 anos para acumular 86 clubes de tiro, de 1974 a 2017. Até o momento, de 2019 para cá, foram abertos 107 novos clubes. Quando observamos sua disposição no mapa, é possível ver áreas indígenas totalmente cercadas por eles. Lembra da BR-163? É ao longo desta rodovia, e também da BR-158, que se concentra grande parte dos clubes de tiros da região. Entre as duas, ao norte do Mato Grosso e ao sul do Pará, estão o Parque do Xingu, e as Terra Indígena Menkragnoti, Kayapó, entre outras.

Esses e muitos outros dados estão sendo revelados na série Amazônia Sitiada, que começamos a publicar na última semana. É um trabalho imenso que envolveu dezenas de profissionais, entre repórteres, editores, checadores, designers, ilustradores, advogados. Esse tipo de reportagem custa uma pequena fortuna para uma redação independente e pequena como a nossa, você pode imaginar. E, aqui, não pesa apenas o gasto direto com a reportagem. Custa caro também porque envolve questões muito sensíveis de segurança e acesso a ferramentas como softwares de georreferenciamento e cruzamento de dados. É um trabalho que demanda paciência e persistência de todos os envolvidos.

Eles armaram o país nesses quatro anos e reduziram o poder de fiscalização do Exército e da Polícia Federal. Reféns do governo Bolsonaro, essas forças perderam ainda mais o controle das informações sobre armas e quem as compra. Claro que não dá para isentar de responsabilidade o Exército, que não demonstra nenhuma intenção de gerenciar a própria bagunça com os registros de CACs e clubes de tiro. As consequências disso podem ser trágicas. Especialmente em uma região onde populações indígenas e ribeirinhas já convivem com um cotidiano violento.

Mais uma vez mostramos como o jornalismo é uma arma poderosa. Eles estão armados com fuzis e munições. Nosso poder passa por outras forças: a investigação, a liberdade para denunciar e a capacidade de comunicar. Lembre-se: tudo que o Intercept publica é gratuito e acessível para toda a população. Quando você apoia o jornalismo do TIB é isso que você garante: que o meu trabalho aconteça de maneira autônoma e que todo mundo possa ter acesso a ele.



Carol Castro   
Repórter                          





GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

Postar um comentário

0 Comentários