UMA ESCOLHA MUITO FÁCIL, MAS

A nossa oposição não termina neste domingo.

Desde 2018, sempre mostramos a nossa oposição ao governo Bolsonaro e tudo o que ele sempre representou: autoritarismo, políticas de morte, fisiologismo político, corrupção, relações mal explicadas com milícias, ultraliberalismo econômico e desmonte de políticas de justiça social. O nosso lado sempre foi o oposto.

Neste primeiro turno, o petista Lula conseguiu antagonizar com Bolsonaro. Ao longo dos últimos meses, parte do nosso trabalho tem sido mostrar as entranhas das duas campanhas. A tutela de Bolsonaro pelo Centrão, a preocupação com segurança e a centralização de poder de Lula, as dissidências internas de ambas as coligações que disputam a Presidência. Não poupamos críticas a Ciro Gomes e à terceira via, mostramos como a Assembleia de Deus está tentando doutrinar fiéis contra a esquerda, enquanto a Universal desembarca de Bolsonaro. Também revelamos um esquema suspeito de rachadinhas de verbas de educação ligado ao ministro Ciro Nogueira e publicamos uma série de reportagens sobre a distribuição de grana nas campanhas eleitorais – o que perpetua a desigualdade de gênero e raça no Congresso.

Tem muito em jogo neste domingo.

Nesta semana, enquanto Bolsonaro definhava em público, a campanha de Lula cresceu. Depois de vários ex-presidenciáveis, a frente ampla que se aglutinou em torno do petista abraçou economistas de diferentes vertentes, notórios críticos ao partido e, bom, deu a volta até chegar ao núcleo duro bolsonarista. Segundo a colunista Malu Gaspar, até mesmo o dono da Riachuelo Flávio Rocha, um bolsonarista raiz que em 2017 denunciava um "plano comunista" no Brasil, e Henrique Viana, dono da Brasil Paralelo – que dispensa comentários – estiveram no concorrido jantar promovido pela Esfera Brasil, grupo que reúne grandes empresário do país.

É claro que o pragmatismo e a construção de alianças foram fundamentais para o sucesso da campanha de Lula. A tão esperada frente ampla aconteceu e foi o que viabilizou essa possível vitória que se descortina. Mas é aí que mora o perigo. Até que ponto o novo presidente, se eleito, vai ceder aos apoiadores de ocasião? Mais importante: quais são os pontos inegociáveis?

Na área socioambiental, em que o PT escorregou nas gestões anteriores, há promessas consistentes, como a criação de um Ministério dos Povos Originários com um indígena como titular e o combate ao garimpo em terras indígenas. Depois desses quatro anos de Bolsonaro, com a Funai implodida e responsável pela destruição de direitos de quem deveria proteger, a promessa de Lula é um alívio. Mas, mesmo assim, ainda é uma promessa. Na área econômica, o favorito nas pesquisas já criticou o teto de gastos, que chamou de “coisa para garantir interesse do sistema financeiro e dos credores”. Mas esse "sistema" já farejou a sua vitória e, agora, ensaia abraçá-lo. Haverá retribuição? Qual?

Será que finalmente vamos ter coragem de encarar questões que, historicamente, são vistas como tabu em eleições – mas são determinantes em problemas sistêmicos do Brasil? Vamos falar da Lei de Drogas e do encarceramento em massa, que colocam em risco a existência de talentos como Rennan da Penha e a como Ebony, dois dos nossos entrevistados no PPRT? Da política de matança que fez jorrar mais uma vez sangue na Maré às vésperas da eleição? Vamos discutir a sério os problemas de saúde pública relacionados ao aborto, coisa que nossos vizinhos já fizeram – e é um dos temas mais urgentes quando se fala em direitos das mulheres?

A possível vitória de Lula marca o fim de quatro anos de um dos piores presidentes do país, um período de trevas que, assim que acabado, arrastará todos os seus apoiadores para o lixo da história – e fará com que seus filhos e netos se envergonhem do que aconteceu ao estudarem o bolsonarismo. É o começo de um novo tempo de esperança, mas de muito trabalho para reconstruir sem repetir os erros do passado.

Para o jornalismo, de certa forma também será um alívio: além de não precisarmos lidar com os factóides e apitos de cachorro plantados pelos bolsofilhos e pela Secretaria de Comunicação da Presidência, também não precisaremos mais enfrentar os arroubos autoritários, os escândalos em série e os trilhões de panos passados que impediram que investigações consistentes sobre as várias denúncias envolvendo a família Bolsonaro e seus ministros fossem para frente.

Mas precisaremos lidar com outras questões. Haverá anistia para tudo o que vivemos e presenciamos nesses quatro anos? Repetiremos os mesmos erros? Precisaremos estar mais vigilantes do que nunca, porque o diabo mora nas conciliações que, em nome de uma suposta pacificação, negociam o inegociável.

A reta final da campanha projetou Lula para a vitória quase inevitável, mas também evidenciou o complexo jogo de interesses que ele vai ter que equilibrar. Nos últimos quatro anos, Bolsonaro só não ruiu completamente porque teve pilares de sustentação considerados "técnicos" – em detrimento dos "políticos". Se o sentimento de antipolítica contra-tudo-o-que-está-aí parece ter arrefecido, Paulo Guedes e Tarcísio Freitas, os "técnicos", são alguns dos raros que não deixam o governo Bolsonaro absolutamente desmoralizados (Tarcísio com chances de ir para o governo de São Paulo, inclusive).

Só que a técnica, como bem apontam Pedro Abramovay e Gabriela Lotta no livro "Democracia Equilibrista", não é neutra. O estado está cheio de técnicos que agem a serviço do corporativismo ou de setores empresariais específicos – e eles continuarão, ganhe quem ganhar. Nessa transição, observar a influência do poder privado será mais importante do que nunca. O jantar com os empresários deu a tônica desse novo capítulo.

O nosso lado, neste domingo, é o da democracia. Estaremos vigilantes não apenas para que promessas sejam cumpridas, mas também para expor e monitorar os interesses que já começam a se desenhar em torno do provável novo governo. Alguns, inconciliáveis. O nosso lado é oposto ao do autoritarismo, mas não seremos dóceis com o vencedor, seja ele quem for – continuaremos defendendo tudo o que sempre defendemos. Desta vez, em um cenário possivelmente menos violento, autoritário e doente – mas ainda na oposição, como deve ser o jornalismo que se propõe a investigar e expor abusos de poder.

Porque, para reconquistarmos o que foi perdido, temos um longo caminho depois desse domingo.






Tatiana Dias
Editora Sênior                                                               
                                                             

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