COM AÇUCAR, COM AFETO; CAMILA; E A AMÉLIA

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Chico Buarque avisou que não vai mais cantar “Com Açúcar, Com Afeto” por se tratar, segundo ele, duma letra machista.

O Chico tem direito de não cantá-la. Digo mais, é um ato que corrobora a sua grandiosidade não só artística como humana. Chico, na Ditadura como agora (e esses dois momentos têm muito em comum), se mostra(ou) um entretanto ao status quo infeliz.

Não concordo, porém, que a música seja machista. E, ouvinte dele, lamento a decisão (por sorte, a tenho salva num pendraive).

Chico explicou que a composição é da década de sessenta e representa uma época. Hoje, diz ele, não a faria.

Discordo. Embora sim, em décadas atrás era mais comum as mulheres não trabalharem fora, serem as chamadas donas de casa, isso não se acabou por completo. E, mais: a música não trata da mulher que fica em casa. Pra mim (e as músicas podem ser interpretadas segundo a subjetividade de cada um), trata-se dum amor desproporcional. Ela o ama muito mais do que ele a ela. Ele parece ser um boa-vida, que não trabalha, vive e sustenta a mulher sabe-se lá como. Passa os dias nos botecos e as noites na farra. Volta e ganha não só o perdão da mulher como também seu doce predileto. Com açúcar, com afeto.

Mas ele bem poderia desrespeitar a mulher sendo um trabalhador das sete às dezoito e ela também uma empregada da indústria. Apaixonada, faria a jornada dupla. Em frente a máquina o dia todo; fazendo doce à noite.

A condição de subordinação da música não parece ser por ela ser mulher. A mim, fica claro que a mulher aceita essa situação (quase humilhação) porque o ama. Ora, e homens também não podem se apaixonar e tentar enganarem a si mesmos fingindo acreditar que a mulher amada vai melhorar? A própria MPB está recheada de canções desse tipo. “Você diz que sou seu homem / Que é só minha e de mais ninguém / Mas está na cara com certeza fala pra ele também / Passo horas em frente ao espelho / Em pensamento acabo tudo / Mas quando me abraça toda a raiva passa / Então fico mudo” canta o sertanejo Leonardo.

Penso que cantar uma situação não é necessariamente defendê-la. Pelo contrário. Em regra, mostra uma contrariedade do artista. O teor da música do Chico, no meu ver, não é machista. É romântica. Se a protagonista da letra está, à livre interpretação dalguns, sofrendo misoginia, então que a música sirva de alerta, denúncia duma situação a que as mulheres não devem se submeter.


E cito dois exemplos.
Chico Buarque (Imagem: Amanda Guimarães/aCrítica)

A música “Camila, Camila”, do Nenhum de Nós, conta da violência que uma menina sofre do namorado. Eis nela não só a misoginia como a agressão que poderia redundar no que hoje conceituamos como feminicídio.

É evidente que o Thedy Corrêa, seu compositor, não é machista. Mas a “Camila” é ainda mais submissa ao namorado do que a personagem de Chico. Ela apanha quieta. O máximo que faz é “Às vezes [pedir] a ele que vá embora / Que vá embora”. Ora, essa não é a postura que se espera duma vítima de agressão. Embora tivesse apenas dezessete anos, não precisava “[Baixar] a (…) cabeça pra tudo”. Se ela não quisesse fazer como por último cantou a Elza Soares e “E [jogar] água fervendo / Se você se aventurar”, poderia no mínimo procurar a delegacia mais próxima e denunciar o crime. Tudo bem que na década de oitenta, quando da composição da letra, não existia as delegacias especializadas, mas, ainda assim, era um crime. E, mais, a música é até hoje cantada e escutada, inclusive por mim. Penso que não sou machista. E sei que, infelizmente e não obstante um relativo forte aparato estatal pra coibir esse tipo de prática, ainda há “camilas” por aí. Tenho a música como cantando uma denúncia, enfim.

E, por fim, uma música pode virar adjetivo. Aquela mulher que faz tudo em casa a deixando nos trinques sem necessariamente a ajuda do marido é chamada de Amélia, numa referência à canção “Ai Que Saudades da Amélia”.

Antes de prosseguir, devo porém fazer justiça a uma das maiores injustiças da MPB. Analisem a letra de Ataulfo Alves. Em nenhum verso ele diz que a Amélia é submissa ao seu ex-companheiro. E, digo mais, não há nem mesmo referência à Amélia como sendo uma boa dona de casa, seja lá o que isso for.

Amélia era uma mulher simples, humilde e sem riqueza. Apenas isso. Nem mesmo que era apaixonada pelo ex-companheiro é dito na canção. Inclusive, gosto de pensar que foi a Amélia que, em meio à bagunça da casa (depois se limpa, ora), mandou o sujeito embora. E ele, agora e mal acompanhado, sente saudades refletindo onde foi que errou.

Mas, enfim, injustiças à parte (mas não sem o devido registro), cito a Amélia como uma música que, ainda que equivocadamente, virou sinônimo de algo que uma mulher comumente não quer ser.

Poderia a Camila também ser popularmente relacionada à violência doméstica que as mulheres, ao contrário dela, não podem aceitar passivamente.

E a personagem do Chico, uma pena não ser denominada, é um exemplo duma relação de prevalecimento, já que a outra parte ama demasiado e incondicionalmente. Algo que pode ocorrer seja com ele ou com ela.

De minha parte, pendraive no rádio, seguirei cantando “Sei que alguém vai sentar junto / Você vai puxar assunto / Discutindo futebol”

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”


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