'ULISSES': ROMANCE É AINDA O MAIS PAPARICADO, TEMIDO E MISTIFICADO DA LITERATURA

Livro foi escrito em 23 endereços diferentes, espalhados por Áustria, Suíça, Itália e França

Paulo Nogueira, Especial para o Estadão

Centenário de 'Ulysses', clássico da literatura mundial

Por três anos, o site The Millions fez uma ciclópica pesquisa: seja pela extensão, estilo ou extravagância estrutural, qual o livro de leitura mais difícil em língua inglesa? Deu Ulysses na cabeça.

Ulysses degenerou num mito urbano literário, que lembra o epigrama de Garcia Márquez sobre a transcendência: “Não acredito em Deus, mas tenho medo Dele”. É a descrição de um único dia (16 de junho de 1904, uma quinta-feira) na vida do angariador de publicidade Leopold Bloom, de sua mulher Molly (a Penélope mais infiel de todos os tempos) e de Stephen Dedalus (personagem de O Retrato do Artista Quando Jovem, e retrato de Joyce quando jovem).


Ilustração de James Joyce, autor de 'Ulysses' estilizada com o mapa de Dublin Foto: Hammer Museum

O Bloomsday exerce no espírito contemporâneo uma espécie de tique sadomasoquista. O Ulysses é o título mais paparicado, temido e mistificado da história da literatura – mais dissecado do que saboreado, mais comprado que amado. Parte da “culpa” é do autor, que o apinhou de alusões (à Odisseia, a Hamlet, à Bíblia: cada um dos 18 capítulos corresponde a um ícone homérico, a uma hora do dia, a uma parte do corpo humano, a uma arte, a uma cor e a um símbolo, tudo num estilo diferente, de Chaucer à gíria hodierna).

Primeiro, Joyce se pavoneou: “Arrumei trabalho para os críticos pelos próximos 100 anos”. Depois, caiu na real e suspirou para Ezra Pound: “Acho que sistematizei demasiado o Ulysses”. Mas basta não darmos bola para os esquemas arcanos, como sugeriu Vladimir Nabokov, e a recompensa será inebriante. Joyce deu um bico no balde das estruturas romanescas. Não inventou nada (o monólogo interior nasceu do francês Édouard Dujardin, hoje quase tão anônimo quanto o Soldado Desconhecido), mas turbinou os recursos da prosa com uma proficiência ímpar. Como notou T. S. Eliot, Joyce matou o século 19.

Ulysses foi esnobado por editores, censurado, queimado e processado em tribunal por obscenidade. Tem um léxico de 30.030 vocábulos (mais que Shakespeare, que já era um prodígio). Há quatro traduções para o português. E elas coincidem na opção pelo “sim” como a última palavra do romance (no original, “yes”). Paulo Francis implicava com isso na versão de Houaiss, preferindo a alternativa “é”, alegando que os brasileiros raramente usamos o “sim.”

Ulysses foi escrito em 23 endereços diferentes, espalhados pela Áustria, Suíça, Itália e França – as residências do escritor lembravam caravançarais. Tom Stoppard reverenciou a proeza na peça Pastiches, onde há o diálogo sarcástico: “E o que o senhor fez na Grande Guerra, senhor Joyce?” “Eu escrevi o Ulysses. E o senhor?” Joyce contou com o fervor de tietes devotos. Durante 30 anos, a milionária inglesa Harriet Shaw Weaver resgatou o clã Joyce da rua da amargura. Quando outros editores roeram a corda, assustados com as acusações de pornografia, Sylvia Beach, americana dona de uma livraria em Paris, assumiu o risco. Mas só depois de uma vaquinha. Bernard Shaw, conterrâneo de Joyce, declinou: “Se a senhora acha que um irlandês duro vai dar tudo isso por um livro, é por que não conhece os celtas”. Churchill, por sua vez, contribuiu.

Nora Barnacle foi mais do que esposa e musa – inopinadamente, a própria mentora de Joyce. Quer Molly Bloom (figura feminina principal do Ulysses) quer Anna Livia (personagem feminina principal do Finnegans Wake) são decalcadas de Nora. Nada mau para uma mulher saída da roça irlandesa para trabalhar como camareira em Dublin. E que na melhor das hipóteses leu Ulysses na diagonal. Em cartas à sua irmã, Nora teimava que Joyce fosse cantor e não escritor. Quando Joyce a presenteou com o primeiríssimo exemplar do Ulysses, Nora resmungou que iria vendê-lo imediatamente.

O teor do encontro sísmico de Joyce, de 21 anos, e Nora, de 20, é controverso. Teriam ido para a cama? Brenda Foxx (biógrafa de Nora) como Richard Ellmann (biógrafo de Joyce) juram que a coisa bateu na trave. O casal afastou-se do Hotel Finns, onde Nora trabalhava (hoje uma clínica dentária), e se enroscou num beco. Ela descalçou a luva, e enfiou a mão dentro da calça dele. Joyce foi romântico a ponto de pedir aquela luva de recordação – dormiria pelas próximas semanas abraçado a ela, como um ursinho de pelúcia. Comprou para Nora um novo par e mandou entregar com um bilhetinho: “Trocado não é roubado.”

Joyce morreu em Zurique, em um dia 13 (como ele temia) de 1941, de úlcera – e depois de 40 anos de biritas torrenciais. As últimas palavras dele foram: “Does nobody understand?” (“Ninguém entende?”). Nora, para variar na pindaíba, tentou repatriar o corpo para a Irlanda, cujo governo, para seu eterno vexame, recusou. Depois do enterro, tomou um táxi. Ao vê-la chorar, o taxista consolou-a, com um tato duvidoso: “Minha senhora, tenho a certeza de que haverá outros homens!”. Nora morreu em 1951 e foi sepultada no mesmo cemitério Fluntern, embora num túmulo diferente. Mais tarde, reuniu-se a Joyce num novo jazigo, doado pela prefeitura de Zurique. Na sepultura ao lado, repousa o nobelizado escritor Elias Canetti. Foi o mais perto que James Joyce chegou do prêmio Nobel.


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