OS REMANESCENTES


(Imagem: Tomaz Silva | ABr)

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

O pessoal até fez manifestação, trancando a avenida movimentada. Mas não teve jeito. A Senhora Doutora Juíza de Direito não aceitou o recurso impetrado pelos moradores na ordem de reintegração de posse, conforme avisou o advogado daquela gente.

Na manhã nublada de terça-feira, a dez dias do Natal, vê se pode!, chegaram os caminhões que levariam as mudanças. Gentileza do proprietário do terreno, perante um Termo de Acordo conseguido pelo supracitado advogado daquela gente, pois que não acusassem o dono da terra de sovina impiedoso e insensível. Por precaução, os motoristas só estacionaram depois que a tropa de choque chegou. O Oficial de Justiça, que veio com a Polícia, pronunciou à imprensa que os soldados estavam ali pra segurança dos próprios moradores, numa declaração inconvicta.

De fato, a Polícia ficou na borda do terreno, observando. Os soldados, imóveis, seguravam o escudo com a mão esquerda e o cassetete com a direita. Precaução. Um sargento puxou, por precaução, um cordão de isolamento, donde atrás dele os fotógrafos tiravam fotos pros jornalistas estamparem as suas reportagens, em que se compadeceriam sobretudo com as mulheres, com as crianças e com os idosos, mas legitimariam a ação evocando o Estado Democrático de Direito, que o Estado Democrático de Direito é fundamental pra mantermos a ordem pré-estabelecida. O Tenente dava entrevistas.

Os caminhoneiros arribaram às caçambas organizando os pertences de qualquer jeito. Ouviu-se o barulho de não sei quantos vidros quebrarem. As mesas de pernas guenzas ficaram ainda mais guenzas. Os colchões de espuma iam no meio dos móveis incupinzados, pra abafar as pancadas e diminuir os prejuízos.

Havia um constrangedor silêncio. Os vizinhos se entreolhavam, mas não falavam nada, embora cada olhar dissesse muito, num lamento aquietado. O cadeirante ajudava carregando miudezas. Mandou dois à merda, pois lhe aconselharam a não se envolver, pra não se machucar. Não estava pra amabilidades naquele dia.

Uma criança rompeu o silêncio chorando de fome. Reclamava seu leite de por-direito. A mãe interrompeu o carregamento, sentou-se nuns tijolos renegados e tirou a teta de dentro da blusa surrada, oferecendo seu bico suado ao filho que, indiferente a tudo, só queria mamar.

Os casebres foram desmontados com poucos cuidados. As telhas de zinco se amassavam. As de amianto se quebravam. Muitos martelavam os dedos ou furavam as mãos com os pregos enferrujados, na pressa de terminar e ir sem olhar pra trás, depois de dois anos de acampamento e duma quase certeza de que finalmente conseguiram a morada fixa. Nunca tinham permanecido tanto tempo num terreno. Além disso, o advogado do Movimento vendera ilusões e esperanças. Só que, agora, as ilusões e as esperanças diminuíram. Os honorários estavam no mesmo valor, pois pré-fixados.

Mal colocado tudo dentro dos caminhões, era partir. Havia ainda quem nem sabia pronde ir. Ligavam aos parentes, garimpando uma garagem ou um canto ocioso qualquer pra ficarem uns dias. Um e outro se deram um vacilante abraço, sem a carência de trocarem um boa-sorte.




Alguns, contudo, ficaram. Os caminhoneiros indagavam se não pertenciam aos que carregavam, já que eles faziam feição de pular à boleia. Mas a família negava. Não, não era deles, não senhor. Podia seguir viagem, por favor.

Todos os caminhões saíram atulhados de tralhas. E eles ficaram. A tropa de choque, que não fora usada, bateu em retirada. O sargento rasgou o cordão de isolamento e também embarcou na viatura. Os jornalistas ainda tentavam alguma declaração de ex-ocupante, de polícia ou de oficial de justiça. Um fotógrafo bateu retrato dos que ficaram, mas não sabia se sairia matéria. Tirou a foto por tirar, no seu ofício de tirar quantas fotos de tudo e de todos, sempre em busca do melhor ângulo.

Duas semanas passaram da reintegração e os que ficaram estavam com fome. Sede eles não passavam porque sempre tem uma poça barrenta em algum lugar. E a chuva que rengueia é a mesma que enche as vasilhas perdidas. Mas a fome lhes afetava o humor e lhes debilitava o corpo fedido e tomado de insetos de toda ordem. Não brincavam mais entre si. Qualquer discordância ensejava uma briga enfurecida em que o mais fraco perigava a sair deformado.

Eles queriam ir junto com a família, mas elas lhe negaram carona. É bem verdade que algumas crianças ainda gritaram pro caminhoneiro parar, pois faltava um. Mas os pais lhes davam cascudos e mandavam se aquietarem. Ainda seria mais um pra comer. Outra família julgou que o melhor era deixá-los lá, pois tavam indo sem destino, num deus-dará. Sem contar os parentes que não os aceitavam.

Mas não só as crianças choravam. Muito homem feito molhou os olhos quando teve que partir sem eles. Um velho, no seu ceticismo de velho, disse que os homens se tornaram a bichos insensíveis.

É bem verdade que os que ficaram receberam mais solidariedade dos vizinhos do bairro do que os que se foram. Quando o terreno tava plenamente ocupado, os moradores do entorno achavam que os invasores, acusados de vadios oportunistas, deveriam ser corridos a pauladas, tal cachorros sarnentos. Mas agora, os mesmos moradores vinham mostrar solidariedade, trazendo comida (ainda que não o suficiente) e fazendo votos que conseguissem um novo lar, mais cômodo, o quanto antes. Alguns menores até foram adotados, mas a maioria, suja e fedorenta, foi renegada à própria sorte.

A demora na volta da família os impacientava. Nunca haviam ficado tanto tempo fora. Já saíram outras vezes, mas sempre voltavam. Quem lhes daria o de-comer todos os dias e não somente o de doações incertas e poucas? Quem atiraria sarrafos pra eles irem, obedientes, buscar pra que fossem novamente arremessados e assim sucessivamente, fazendo a brincadeira de que mais gostavam?

A fome lhes definhava. O Tico já tinha morrido. Já tava adoentado desde antes. Talvez por isso a família não quis levá-lo. E sem comida, não durou semana. Quando achavam algo no meio dos restos dos casebres, logo os mais fortes se adonavam, segundo a lei que lhes rege. Os mais magros e esquálidos deviam comer rápido e escondido, quando achavam algum rato morto ou filhote perdido de passarinho urbano.

O Leco foi cheirar o cadáver do Tico, ficando na dúvida se seria ético se alimentar da carniça do companheiro. Mas tudo o que fez foi dar uma lambida em seu lombo, numa atitude que não se sabe se foi condolência ou oportunismo de mastigar uns vermes brancos e gordos.

O dono do terreno está aguardando sua valorização pra pô-lo à venda. Enquanto isso, os remanescentes o estão ocupando, tentando sobreviver.


*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”.

GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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