(Imagem: Reprodução 1zoom)
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
“Chegará o dia em que todo homem conhecerá o íntimo de um animal. E neste dia, todo o crime contra o animal será um crime contra a humanidade.” — Leonardo da Vinci.
A universidade federal do sul da Bahia considerou a possibilidade de aproveitar os programas de interiorização do governo para se auto imaginar como uma universidade popular. Isso implica que seus objetivos deveriam atender às demandas populares e não elitistas, pois são instancias incompatíveis.
Para todos os efeitos, o canônico é elitista, pois a tradição universitária foi construída sobre um pedestal de desigualdade na apropriação de discursos impróprios aos não neófitos.
A evidência desse apego à tradição elitista está justamente na divisão intercampi dos cursos de ponta que a universidade oferece: medicina no campus Paulo freire, direito no campus sossigenes costa e engenharias na reitoria de Itabuna.
São cursos tradicionais aos apelos da classe média que ainda acredita na ascensão social de seus filhos pela via da educação doutoral.
Para além da minha carga de serviço obrigatório, tenho oferecido cursos livres na esperança de testar metodologias diversas. Nesse sentido, elaborei um curso chamado Matemática Paradrônica Para Distâncias Medíocres; Ecologia de Nutrição; Expedições Indisciplinares; dentre outros. Tempos atrás ofereci um com o título Habeas Corpus para o Macaco. Como esses cursos devem ser aprovados por um colegiado de professores e estudantes, impediram que eu ofertasse esse pautados na justificativa de que seria um curso que poderia ter uma interpretação racista.
Os antirracistas de plantão são mais racistas que os racistas, pois imaginaram que, a despeito do texto que elaborei, poderiam confundir o macaco do texto com os desrespeitosos xingamentos ofensivos aos negros.
De modo geral, o nível de discernimento dos ativistas universitários é muito acanhado acompanhando as limitações intelectuais dos tempos neoliberais.
Impedido de ofertar esse curso livre, que os estudantes só se inscreveriam se desejassem, sem obrigatoriedade, agora produzo esse artigo para explicitar as intenções da proposta.
Pensar no direito é pensar no direito das gentes e no direito do poder. São excludentes e longevos. É pensar a relação entre o direito consuetudinário, chamado também de direito germânico e o direito romano, ou direito positivo.
Se o primeiro é complexo e tradicional, o segundo é um atestado de privilégio desde seu nascimento.
Giorgio Agambem explicitou o conceito de homo sacer como um paradigma do direito da comunidade. O homem sagrado é aquele que ao ferir a coesão do grupo se torna um exilado contra o qual aquele que o matar não incorre em pena.
Da forma com que isso se manifesta, me parece ser um indicativo do vigor de todas as comunidades para manter saneada a convivencialidade. Numa favela, numa zona de exclusão, onde quer que seja, em que as ferramentas institucionais se resumem à escola e à polícia, as regras internas da comunidade nunca se apagam diante de uma legislação exterior a ela.
Pouco importa se os gestores da liturgia jurídica não reconhecem essa forma ancestral de direito do fazer das gentes, ele está vigorando há muito tempo e tem muito de eficácia e labor.
Já o direito romano tem outra origem e função. Ao contrário do que se imagina, não apareceu na Roma antiga, mas é um tudo uma construção da revolução francesa. É o código napoleônico seu berço e sustentáculo. E foi elaborado para garantir o direito do cidadão.
O cidadão é proprietário, aquele que na nova hierarquia revolucionária substituiu a nobreza e assumiu o nome de burguesia. Todo o ritual jurídico evoca a grandiosidade purista da toga, daqueles que não abusam dos distintivos de classe. Nisso a justiça que nascia com a revolução era cega e carregava a espada e a balança em cada uma das mãos. Mas era uma justiça elaborada para defender um grupo com uma carga de direitos e de privilégios em relação a toda a sociedade que se abastardava nesse exato instante histórico.
Quando a carta de direitos do homem e do cidadão foi elaborada na França, todos os expurgos já haviam sido consolidados. Caberia a cada grupo expurgado um árduo caminho de lutas reivindicatórias que amenizasse o expurgo.
Por aqui a lei de terras de 1850 traduzia exatamente esse momento. Foi feita para evitar que qualquer um se apropriasse de terras e se tornasse um cidadão. Uma garantia que com o fim da escravidão ficou bem evidente a sua funcionalidade. Os indesejados seriam mantidos fora para sempre. Para estes, eram as leis consuetudinárias que valiam.
Entender o funcionamento do direito positivo é um desafio, uma vez que ele estabelece, sempre, uma zona de privilégios, embora, por sua natureza positiva, nunca pode parar de incorporar novos privilégios. Tentaria aqui historicizar seu movimento a partir do centro colonizador que é a Europa.
Para isso precisamos entender como surge a hierarquia.
Ela começou com avisos na era Tudor, como disse Pascal um pouco depois, “a usurpação começou sem razão e tornou-se razoável, agora precisamos fazer desaparecer o seu começo e torná-la eterna, se não quisermos que logo tenha fim”.
Foi numa igrejinha modesta e sem pompa, na homília do bom pastor Jeremiah Burroughes em 1657: “Ele fez os outros para o homem e o homem para si próprio” e Richard Bentlei concordava em 1692: “todas as coisas foram criadas para o benefício e o prazer do homem” (p.23).
O antropocentrismo ganhava cada vez mais força com prédicas como essa dita por Willian Somervile em 1735: “as criaturas brutas são sua propriedade; feitas para ele, servis à sua vontade; tão útil o que ele preserva, como o que mata é nocivo; o seu soberano único e exclusivo” (p.27).. A soberania humana vinha assim a galope, forjada no humanismo e no especismo. Mas a separação hierárquica criada em relação aos animais foi a primeira só.
Gibbon de seu púlpito vaticinou ainda em 1609: “o ser humano bruto, sem artes e sem lei, mal pode ser distinguido do resto da criação animal”; Robert Gray o acompanhava: “a maior parte do globo era possuída e injustamente usurpada por animais selvagens ou por selvagens brutais, que, em razão de sua ímpia ignorância e blasfema idolatria, são ainda piores que os animais” (39). Assim tudo que não era naturalmente civilizado entrava na lógica da dominação ou destruição.
Uma vez hierarquizado diante dos animais, depois diante dos selvagens, chegava a vez das mulheres que passaram também a se igualarem aos animais: em 1570, Nicolas Woodies afirma que as mulheres não tinham alma. Ou outro clérigo que afirmava que “as mulheres não tinham mais alma que os gansos”. Um clérigo do período anterior à Guerra Civil comparou as mulheres às porcas, daí ressoa o termo bacorinhos para os filhos. (p.51)
Depois das mulheres chegava a vez dos pobres. Thomas Pope Blount decreta em 1693 que “os membros da vasta ralé que parece portar os sinais do homem no rosto não passam de seres rudes em seu entendimento e é por metáfora que os chamamos homens, pois na melhor das hipóteses nada mais são que os autômatos de Descartes, molduras e sombras de homens, que têm tão somente a aparência para justificar seus direitos à racionalidade”. (52)
Culmina nosso historiador: “uma vez percebidas como bestas, as pessoas eram passíveis de serem tratadas como tais. A ética da dominação humana removia os animais da esfera de preocupação do homem. Mas também legitimava os maus tratos àqueles que supostamente viviam uma condição animal. (,,,) os historiadores consideram atualmente que a escravidão negra precedeu as afirmações da condição semi-animal dos negros. As teorias mais desenvolvida da inferioridade racial vieram depois. A domesticação tornou-se, assim, padrão arquetípico para outras formas de subordinação social” (53-5).
Foi Keith Thomas quem se debruçou sobre centenas de arquivos empoeirados para desvelar essa história em seu livro O homem e o mundo natural (Cia das letras, 1996). Acho que é por isso que não existem bons historiadores sem barriga.
O resultado disso nós sabemos. Os animais, tempos depois, seriam elevados à categoria de objetos de estimação, já as mulheres, as que não se submeteram, seriam encarceradas em conventos ou acusadas de hereges e purificadas pelo fogo divino. A mulher, que havia sido por milênios o centro vivo da aldeia, a curadora, a nutriente, desaparecia e em seu lugar surgia a castidade feminina na ordem social dominante.
A história é uma ferramenta política que nasce no âmbito do nacionalismo com um objetivo explícito de fornecer coesão interna e externamente, alinhar a nação no conjunto das nações sob o comando da Europa e um objetivo implícito de naturalizar a desigualdade. Derivada desta, a história do Direito responde a esses mesmos imperativos.
Como todo convencionalismo, a história do Direito é reconhecidamente positivista. Nesse sentido, parece natural que os eventos selecionados para compô-la caminhem do primitivo ao civilizado, num crescendo harmônico até sua maturidade romana resgatada na modernidade sem desgaste aparente.
Desse modo, o Direito responderia a necessidades orgânicas que são equivalentes aos movimentos da história ocidental.
Mas há outra história a ser considerada em sua trajetória: uma história acidental muito mais recente em seus dispositivos de redução e controle, e o Direito, como ferramenta de legitimação que é, tem dado respostas a tais necessidades sociais. É desse Direito e dessa história que tratarei aqui.
Permitam-me, de imediato, recusar todas as evidências que se encontram antes da emergência da civilização da escrita, marcada fundamentalmente pela invenção da prensa mecânica de Gutenberg, do papel e das línguas vernáculas modernas, tudo por volta dos séculos XV e XVI, por duas razões: a absoluta inconfiabilidade dos registros anteriores a esse período e ao papel da história como um dispositivo peculiar de verificação, de construção de verdades e memórias, que se torna hegemônico no século XIX, harmonizando a coerência da nação com a naturalização da desigualdade que caracteriza esse período.
Portanto, a esse momento que chamo de “civilização da escrita”, também corresponde essa história do Direito. Como redutor de humanidade, ou seja, como ferramenta do poder e da dominação aos moldes da cultura europeia moderna.
A grande ruptura se dá com o declínio das comunidades do sacrifício, em que cada um era menor que a totalidade e o grupo e contribuía, se preciso fosse, com seu próprio sacrifício pelo bem do grupo e a sociedade do crime, fundamentada no direito do proprietário.
Essa cultura nasce da tentativa, bem sucedida até certo ponto, de romper com o elo resistente da solidariedade da vila.
Utilizo o termo “vila”, tipicamente europeu, como equivalente a “tribo”, para inferir um tipo de sociabilidade orgânica destacadamente colaborativa e cujo sentido e movimento é sempre circular, seja sua reprodução, seu sentido de tempo e a reciprocidade de doações, favores e trocas que fez da estabilidade sua marca mais indelével.
As vilas e aldeias têm uma existência longeva no tempo e só sofreram modificações significativas por decretos externos advindos de formas inovadoras típicas do poder centralizado que tem inicio justamente com a centralização da Igreja no século XVI, marcadamente provocada pelo Concílio de Trento. Nesse momento tem inicio o processo de crescimento urbano.
É perfeitamente possível reivindicar a memória desse outro tempo e dessa outra sociabilidade sem recorrer somente à imaginação, mas lançando mão de um dispositivo etnológico ao visitarmos as vilas contemporâneas, que ainda conservam essa sociabilidade peculiar de empatias e solidariedade.
Afinal, são laços que demonstram uma vitalidade de difícil dissolução e que registram, portanto, permanências desconcertantes para a mutabilidade exagerada do mundo contemporâneo.
Por isso, o termo que utilizo no título desse artigo é “historicidade”, ferramenta que busca evidências de um início, de uma emergência, e recusa a naturalização frequente e habitual da historia. Historicidade representa um esforço para contemplar um fenômeno do seu nascimento ao seu ocaso, em sua vibração singular.
Se a modernidade reduziu uma grande parte da vida à condição de exploração, a partir do surgimento do direito começaria uma lento caminho de emancipar os fracos sociais com doses diversas de direito poder, a depender sempre de necessidades historicamente dadas. Mas será sempre o direito poder a ferramenta da suposta emancipação dos fracos.
Então, com o fracasso da primeira guerra mundial em destruir os trabalhadores, na Alemanha do fim da República de Weimar surgem os protocolos das leis de arianização, em que uma parte dos fracos recebe o poder de denúncia de ouros fracos para sua destruição, como tinha feito Napoleão segundo ao se unir ao lumpem proletariado contra os burgueses nas guerras civis na França.
O século XX viu esse alargamento dos direitos dados a trabalhadores no estado de bem estar social até as pautas de direitos quando a guerra fria terminou e o modelo neoliberal se abriu para novas formas de conflito. Então vieram o direito do consumidor, o estatuto da criança e do adolescente, o direito dos velhos, as leis antirracistas, anti homofobia e leis como a Maria da Penha, de proteção à mulher. Ou seja, na virada do século, todos aqueles que no início da modernidade foram expurgados como fracos sociais, viram seus direitos seres restaurados. Pouco importa se tais justiça deveu-se à pautas de demandas ou se por doação do poder de plantão.
Para o bom funcionamento do direito positivo, ainda haviam outros fracos sociais a espera de seu dinamismo teleológico.
Para isso, é necessário eleger adequadamente o fenômeno: “habeas corpus para o macaco” será nosso graal: as razões, ou melhor, a racionalidade que está por trás dessa súbita necessidade social cada vez mais abrangente de se conferir ao animal estatuto jurídico de humanidade. Precisando melhor a problemática, apresento a seguinte notícia de jornal e o arcabouço teórico ao qual ela se fundamenta:
STJ JULGA SE CHIMPANZÉS DEVEM PERMANECER EM CATIVEIRO OU SE SERÃO SOLTOS
O ministro Herman Benjamin, da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), interrompeu o julgamento do habeas-corpus para melhor exame do pedido impetrado em favor de dois chimpanzés de nome científico Pan Troglodyte.
A defesa de Rubens Forte, proprietário e fiel depositário de Lili e Megh, recorreu de decisão do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF3) que determinou fossem os animais retirados do cativeiro e introduzidos na natureza. A decisão do TRF3 suspende a condição de fiel depositário de Rubens Forte.
Ao TRF3 o Ibama informou que os animais foram trazidos do Zoológico de Fortaleza para São Paulo, sem autorização do órgão fiscalizador, que a nota fiscal apresentada não permite analisar a origem dos animais, não demonstrando sequer se o chimpanzé pertencia efetivamente ao suposto doador, bem como que estava ausente o registro do animal junto ao Ibama.
O Ibama opinou que esses fatos são suficientes para trazer dúvidas quanto à manutenção dos chimpanzés Megh e Lili com o fiel depositário. Acrescentou que o auto de infração lavrado pelo órgão em decorrência de discussão sobre a posse do filhote foi considerado procedente pela desembargadora do TRF3 Alda Basto.
A defesa de Rubens Forte, ao recorrer ao STJ, alega que a vida dos animais, dado o fato de que o chimpanzé possui 99% do DNA humano, está acima das leis, requerendo que seja aplicada a eqüidade. Afirma também que os chimpanzés não sobreviverão caso sejam introduzidos na natureza, pedindo que continuem sob a guarda e responsabilidade do proprietário.
Ao julgar o caso, o relator, ministro Castro Meira, diz ser incabível a impetração de habeas-corpus em favor de animais. Admite a concessão da ordem apenas para seres humanos. Alerta também que não procede o pedido para que Rubens Forte permaneça como fiel depositário das chimpanzés, pois a decisão proferida pelo TRF da 3ª Região, em nenhum momento, faz menção à eventual prisão civil, o que, em tese, viabilizaria a impetração da medida no STJ[1].
Imediatamente se levantaram as vozes institucionais. Felipe Lobo publica em seu site http://www.oeco.com.br no dia 16/09/2008:
Uma notícia, no mínimo, estranha para os operadores do Direito: a impetração de habeas corpus, a favor de dois chimpanzés.
Não questionamos a importância da proteção aos animais, sobretudo, quando vítimas de maus tratos. Mas, seria o habeas corpus o instrumento idôneo para tanto?
Com certeza, NÃO!
Ao cuidar desse remédio constitucional, a nossa Lei Fundamental, em seu artigo 5º LXVIII estabelece que “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder“.
A questão está em saber quem é esse “alguém” de que fala a norma supracitada. Conforme visto, o habeas corpus está previsto no artigo 5º da Constituição Federal, razão pela qual pode, sem sombra de dúvidas, ser considerado um direito fundamental. Partindo dessa premissa, para que se determine a quem a norma abrange, deve-se verificar, de plano, quais os destinatários dos direitos fundamentais.
José Afonso da Silva, ao tratar do tema, fala em “direitos fundamentais do homem”, conceituando-os como “prerrogativas e instituições que o Direito Positivo concretiza, em garantia à vida digna, livre e igualitária de todas as pessoas“.
De tal modo, a doutrina constitucionalista é pacífica em determinar que o destinatário dessas prerrogativas é o homem, entendido como pessoa humana. Nessa linha de raciocínio, o “alguém” a que se refere o inciso LXVIII do artigo 5º, que regulamenta o habeas corpus, só pode ser a pessoa humana, o que exclui, automaticamente, do âmbito de proteção da norma, qualquer outro ser, que não pessoa humana.
Concluindo: nada obstante a importância do caso, um animal, a exemplo dos chimpanzés do nosso caso concreto, não pode ser paciente em habeas corpus, cuja finalidade precípua é proteger a liberdade de ir e vir do homem, em sentido amplo.
O problema é que este não é, absolutamente, um fato isolado. Em 2005, o presidente do Instituto Abolicionista Animal, Heron Santana, impetrou também habeas corpus em favor da chimpanzé Suíça.
Há pouco tempo, um delegado calça-curta (cabo PM) do interior de Minas Gerais resolveu indiciar um cavalo por homicídio culposo. Alguns promotores, sem levar em consideração a falta de formação jurídica da autoridade improvisada, promoveram um carnaval de críticas ao fato e aproveitaram para alfinetar a Polícia Judiciária, na esteira da disputa que travam pelo comando das investigações.
Realmente, o despacho do cabo, investido das funções de delegado por (ir)responsabilidade do governante daquele Estado, é vexatório, já que o cavalo, não sendo imputável, não poderia ser responsabilizado por nenhum fato.
Imagine o cavalo sendo interrogado acerca do fato, acompanhado de advogado e se defendendo das imputações!
Mas, como o mundo dá muitas voltas, o feitiço virou contra o feiticeiro. Um operador do Direito, promotor de Defesa do Meio Ambiente da Bahia, impetrou, recentemente, habeas corpus em favor de uma macaca do zoológico de Salvador.
Integrante da espécie chimpanzé, a macaca Suíça estava aprisionada numa jaula com área de 77.56m2 e altura de 4 metros no solário, privada, conforme o douto promotor, do seu direito de locomoção.
Ocorre que a Constituição Federal prevê a concessão de habeas corpus a alguém que esteja sofrendo ou ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. Alguém, conforme todos os dicionários, é alguma pessoa, ente, pessoa, determinada pessoa, não um semovente que, apesar de receber proteção legal contra maus-tratos do ser humano, jamais poderia pleitear em juízo o direito de ir e vir.
Delirante, o promotor chegou a defender a tese de que o macaco em nada difere do ser humano, igualando-se, por isso, a uma pessoa e beneficiando-se do remédio heróico, utilizado para a defesa da liberdade de locomoção de quem sofra ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação quanto ao exercício desse direito.
Mesmo sendo impossível juridicamente, o pedido poderia ter sido formulado em outro tom, como fez o poeta e político paraibano Ronaldo Cunha Lima ao impetrar habeas pinho para liberar um violão apreendido pela Polícia Militar da Paraíba durante uma serenata.
Veja que Cunha Lima não pugnou para liberdade do corpo do violão, posto que um objeto, mas rogou pela liberação do pinho que embalava as serenatas dos boêmios paraibanos, clamando pelo amor da noite e pelas virtudes do instrumento que afogava as mágoas doídas do peito dos seresteiros: “O instrumento do crime que se arrola/Nesse processo de contravenção/Não é faca, revólver nem pistola/É simplesmente, doutor, um violão“.
O promotor poderia ter-se valido da Lei de Crimes Ambientais para acusar a direção do zoológico pelo cometimento de maus-tratos contra a chimpanzé, pedindo, em ação própria, a interdição da jaula e transferência do animal para um espaço mais adequado. Se poeta, impetraria um habeas primates e clamaria pelos direitos dos animais.
Infelizmente, o instrumento jurídico acionado pelo Ministério Público não encontrou respaldo e, como a justiça demorou a chegar, a chimpanzé acabou sendo morta por bandidos, estes, sim, imputáveis, sujeitos de direitos e deveres e liberados, quem sabe, por algum habeas corpus emitido por pretórios excelsos baianos.
E, fina ironia, ainda tem cavalo sendo indiciado![2]
A jocosidade do missivista acima, contudo, não passa de mera ignorância camuflada sempre pela ironia. No final de 2010, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro recusou pedido similar feito para a libertação do macaco Jimmy do zoo de Niterói. Os problemas são muito maiores e precisamos recorrer a um corpus teórico mais consistente.
Mais sério, Alcino Leite Neto nos oferece um amplo panorama da questão pelo Brasil e pelo mundo.
A Constituição também veda práticas que levem à extinção de espécies ou “submetam os animais à crueldade” (Cap. VI, art. 225, § 1º, inciso VII). Pedir habeas corpus para um animal é um modo de desafiar os limites do sistema jurídico e também uma forma de protesto político. A intenção é parecida à do americano Gary Francione, professor de direito que é um dos principais defensores da causa do abolicionismo dos bichos. Um de seus livros, de 2008, tem como título “Animal as a Person” (o animal como pessoa).
Ao reivindicar que animais -ao menos os primatas superiores- possam usufruir de um direito reservado às pessoas, esses grupos pretendem colocar em xeque uma tradição filosófica e cultural de séculos, que o direito apenas formaliza. Segundo essa tradição, os homens se definem por oposição aos animais, sendo estes inferiores àqueles por estarem desprovidos da razão, da palavra e da preocupação recíproca pelos seres humanos.
Para René Descartes (1596-1650), por exemplo, os bichos não passam de autômatos, já que, desprovidos de alma, não dispõem senão da pura mecânica do corpo. Para Kant (1724-1804) – cujo pensamento exerceu tanta influência sobre a jurisprudência -, já que animais são seres desprovidos de julgamento, os homens não têm nenhum dever em relação a eles, a não ser um dever indireto com respeito à própria humanidade. O pensamento ocidental seguiu praticamente na mesma toada até Heidegger e Levinas, no século 20. Raros foram os pensadores que, como Jeremy Bentham (1748-1832), entenderam que os animais deveriam ser dotados de direitos. Para o filósofo britânico, a defesa dos bichos se justifica por estarem eles, assim como os homens, sujeitos ao sofrimento.
Na vida prática, a presunção de superioridade do homem resultou na perseguição desenfreada aos animais, quando não na extinção de espécies, na “escravização” dos bichos, no aprisionamento, na morte em massa e na sua mercantilização para fins alimentares e de entretenimento doméstico[3].
Há uma nova fronteira acadêmica sendo edificada. Direito, antropologia, biologia, ciências da cognição, essa fronteira investe pesado nos estudos animais. Colocando o problema da superioridade humana em questão. A implicação imediata daí decorrente coloca igualmente a própria condição de animalidade do homem e um bom terreno já percorrido sobre a cultura animal.
Já há uma farta bibliografia sobre o tema. “Pensar/Escrever o Animal: Ensaios de Zoopoética e Biopolítica“, organizado por Maria Esther e “O Animal Escrito: Um Olhar Sobre a Zooliteratura Contemporânea“, também de sua autoria ; “A Inconstância da Alma Selvagem“, de Eduardo Viveiros de Castro; “L’Écologie des Autres – L’Anthropologie et la Question de la Nature” (a ecologia dos outros – a antropologia e a questão da natureza), de Philippe Descola; “O Animal que Logo Sou”, de Jacques Derrida; “La Question Animale – Entre Science, Littérature et Philosophie” (a questão animal – entre ciência, literatura e filosofia), organizado por Jean-Paul Engélibert, Lucie Campos, Catherine Coquio e Georges Chapouthie; “Philosophie Animale – Différence, Responsabilité et Communauté” (filosofia animal – diferença, responsabilidade e comunidade), com textos de John Berger, Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione, Martha Nussbaum e John Callicott.
Ainda segundo Alcino Leite Neto,
Os estudos animais vêm adquirindo um tom mais político, particularmente entre norte-americanos. “Embora nos EUA existam alguns pensadores muito importantes, ocorre um predomínio da questão da militância sobre a questão filosófica e literária“, conta Maria Esther. A primeira Mind Animals Conference, realizada em 2009, em Newcastle (Austrália), mostrou a ela que já está em curso “um confronto entre os pesquisadores mais militantes e os mais reflexivos, que chegaram a ser acusados pelos primeiros de apatia política“.
A militância pró-animais parece ganhar cada vez mais adeptos e pode se tornar um movimento de forte impacto na sociedade nas próximas décadas. Nesta época de descrédito das ideologias políticas, é como se o animal tivesse se tornado o novo proletário -um “sujeito”, um “vivente” explorado, escravizado e sacrificado pelos humanos e pelo capitalismo, cujos direitos precisam ser defendidos por grupos organizados e inter-relacionados globalmente. É uma verdadeira revolução dos bichos que vem sendo gestada pelos ativistas[4].
Essa é uma perspectiva interessante que merece ser perseguida.
A relação do homem com o animal responde a uma historicidade que pode nos fornecer pistas para essa discussão.
Houve um tempo em que homens e animais não podiam ser facilmente distinguíveis. Até hoje, em algumas tribos amazônicas, é possível surpreender uma mulher amamentando um animal ou algum bororo metamorfoseando-se em arara. O bisão era sagrado para algumas tribos das planícies da América do Norte até que a construção da primeira ligação por estrada de ferro que cruzou o meio oeste quase o extinguiu, da mesma maneira que inúmeros animais são sagrados ainda hoje em vilarejos indianos.
Dizem que no antigo Egito (Heródoto nos diz), os animais tinham o direito a enterro e mumificação. “Cada espécie de animal era enterrada em uma cidade diferente”. Infelizmente, já na modernidade, com o afã de corromper esses antigos santuários, milhares desses animais mumificados acabaram como adubo, com exceção de dois, que estão hoje no Museu Britânico.
Num cenário de desigualdade, qual a função do direito? Aparentemente, ele é reparador dessa desigualdade, fornecendo ferramentas aos mais fracos para compensar as injustiças. Aparentemente. O paradoxo dessa circunstancia é que a sociedade de direitos é extremamente desigual e injusta e não se transforma por meio do direito adquirido. Pois ele é apenas uma ferramenta de empoderamento dos mais fracos e a violência passa a ser a única forma de reparação dessa desigualdade, pontualmente, concretamente, direcionada para outro fraco, outro empoderado.
A função do direito em suas últimas manifestações é produzir acima de tudo controle não por sua capacidade de equacionar justiça, mas por seu papel gerador de conflitos e, portanto, violência. Seu caráter de empoderamento é mais importante para conservar uma sociedade injusta e ao mesmo tempo satisfazer a ânsia social por direitos reparadores. Essa ambiguidade pode ser explicada pelo caráter tipificado nos sistemas poliarquicos.
À desumanização provocada pelo desterrramento desses primeiros grupos autônomos no processo que ficaria conhecido como “cercamento”, acompanhado por discursos ideológicos que aproxima negativamente os homens e mulheres aos animais, que justificavam sua redução pelo novo poder, era também um fenômeno dialético na medida que, em sua reciprocidade, também coisificava o usuário do poder. As primeiras manifestações dessas reduções foram massacres impetrados pelos subordinados aos animais de estimação ou aos animais que simbolizavam esse poder acima de tudo. Massacres de gatos na França, execução pública de touros (tauromaquia) na Espanha, execução coletiva de golfinhos na Dinamarca são alguns exemplos dessa dialética com diferentes significados.
A farra do boi e o próprio folclore do ciclo do boi, em que para vingar-se do patrão e ao mesmo tempo alegrar a esposa, o capataz executa seu melhor animal e serve sua língua à esposa grávida.
A historicidade é, pois, uma questão complexa do ponto de vista teórico na medida em que a prática instituidora do social é ação de sujeitos que são instituídos como tais por esse mesmo social. As dificuldades para compreender esse duplo movimento de instauração dos conceitos de direito natural e de estado de natureza como formas de sociabilidade precárias e superadas pelo advento do contrato social como decisão consciente dos indivíduos para passar de seres “naturais” a seres “políticos”, reunidos sob o direito civil. Ou ainda, a explicações do surgimento da vida social não por um pacto de vontades, mas por um golpe violento ou por uma fraude praticada por alguns poderosos sobre os pobres, aos quais é proposta uma unidade que irá, na verdade, submetê-los à espoliação e à opressão (lembremos, aqui, do Discurso sobre à origem das desigualdades entre os homens, de Rousseau). Ou, então, na vertente hegeliana, o advento da sociedade civil será explicado pela negação-superação e conservação da família, entendida como unidade natural e subjetiva, determinada pelos laços de sangue e pela vingança do delito. A passagem da família à sociedade civil será feita pelo surgimento do Direito Objetivo. Ou, enfim, em Marx, o advento da vida social é marcado pela divisão social do trabalho, que determina as relações dos homens com a Natureza e deles entre si, as divisões de autoridade e a forma do poder. Em todos esses casos, o que se nota é o esforço de uma elaboração na qual a teoria possa coincidir, por meio dos conceitos, com o instante prático de criação social. Em outros termos, a teoria procura determinar o momento preciso no qual a sociedade teria nascido por obra dos homens[5].
Fursonas são humanos com características animais, tais como patas, caudas, cabeça (semelhante aos seres mitológicos de todas as sociedades como o Anúbis na cultura egípcia, Minotauro da Grécia antiga, as Kitsunes na cultura japonesa, a Sereia, Capelobo ou Ipupiara aqui entre nós).
As pessoas autointituladas furries com frequência são pessoas que participam de uma cultura focada na natureza e amantes de personagens imaginários dos autores de desenhos animados onde seres das mais variadas raças, mitológicas ou não tomam vida e agem em uma sociedade paralela à humana. Em1972, quando Elliot S! Maggin perguntou se era preciso existir um Super-Homem, John Lennon, em seu Working Class Hero, de 1969 já havia dado a resposta: Um herói da classe trabalhadora é algo que se deve ser. Mas foi o empoderamento que tornou pacíficas todas as demandas sociais, pois geram novos privilégios e novas zonas de conflitos entre os chamados fracos sociais que a defenderão com unhas e dentes de seus concorrentes. Todos se tornaram um pouco o super homem e um pequeno tirano.
As relações entre homens e animais anteriores à modernidade são gritantes. Se visitarmos a Catedral de Chartres, em Paris, e observarmos atentamente em seu pórtico, podemos entrevistar uma imagem surpreendente. No centro há um santo ladeado por um humano e três animais. Os animais, um leão, um boi e uma águia são, respectivamente, São Marcos, São Lucas e São João, evangelistas, provenientes de uma visão de Ezequiel[6].
Em abril de 2017, uma notícia faz avançar irreversivelmente a fronteira do direito positivo atendendo sua natureza teleológica: A Justiça argentina concedeu um habeas corpus para uma chimpanzé:
A Cecília nem sabe, mas o primeiro passo dela no Santuário dos Grandes Primatas, em Sorocaba, abre um caminho para o reconhecimento dos direitos dos animais.
Cecilia é uma chimpanzé que nasceu e viveu seus 20 anos fechada numa jaula pequena de cimento no zoológico de Mendoza, na Argentina. Nunca tinha pisado na terra nem visto o céu.
Estava sozinha há três anos, desde que os pais e a irmã morreram. Ativistas argentinos entraram com pedido de libertação da chimpanzé, alegando que ela estava deprimida e vivia em condições inadequadas.
Depois de dois anos, numa decisão histórica, a Justiça de Mendoza declarou que Cecília é um sujeito de direito e determinou a transferência dela.
É a primeira chimpanzé no mundo a ser libertada de um cativeiro precário por um habeas corpus, um recurso jurídico para humanos.
O direito romano carrega em si essa ambiguidade extraordinária: é visto como justiça distributiva, mas é nêmesis, essa entidade coloquial que está sempre atrás de vingança.
Nêmesis, na mitologia grega segundo Hesíodo, era uma das filhas da deusa Nix (a noite). Pausânias citou Nêmesis como filha dos titãs Oceano e Tétis. Autores tardios puseram-na como filha de Zeus e de Têmis. É a deusa que personifica o destino, equilíbrio e vingança divina.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor
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