O PODER DA LINGUAGEM NA ARQUITETURA DO CAOS


(Imagem: reprodução)

Aos inúmeros dispositivos digitais criados para a coleta de dados, gostos, tendências, opiniões e decisões, soma-se os de captura das impressões afetivas e emotivas, em uma perspectiva real de controle e condução de pensamentos.


Lucio Lauro B. Massafferri Salles*

No livro Guerras Híbridas – das revoluções coloridas aos golpes [1], Andrew Korybko expõe mecanismos de monitoramento, controle e manipulação, que têm como objetivo conquistar o que ele chama de “demografias alvo”. O caminho para a realização dessas ainda pouco estudadas estratégias de dominação é a fabricação de desestabilização sociopolítica, para subjugar alvos que podem ser, inclusive, agentes políticos, sem a necessidade de usar armas convencionais [2].

Em uma paisagem dessa natureza, os principais instrumentos de ação são as linguagens falada, escrita e imagética (trio audiovisual), com as quais se consegue obter um tipo específico de narcose, alienação e consentimento que, muitas vezes em conjunto, culminam em estados de “não-reação” [3] ou paralisação.

Uma vez que a eficácia de tais manobras psicológicas depende do poder e do alcance das comunicações audiovisuais, compreende-se que a internet, com suas plataformas de mídias sociais, seja um território perfeito para a penetração e o esquadrinhamento invasivo das psiquês de milhares de pessoas que, sem se dar conta, participam das ações de desestabilização sociopolítica dos locais onde vivem.

Vale a pena refrescar a memória, enfatizando a necessidade de se abdicar da ingenuidade no uso dos sistemas e instrumentos usados para navegar nas superfícies desse cyberespaço, lembrando dos aplicativos “inocentes” responsáveis pela captura das fotos de pessoas para supostamente transformá-las em atributos ou características de personalidade. Incautamente, muita gente entregou de bandeja um sem número de dados pessoais próprios, tais como postagens/opiniões/relatos/gostos, fotos, curtidas, contatos e sabe-se lá mais o que, dando seus consentimentos através de um simples click do mouse [4]. E esse é apenas um, entre dezenas de exemplos de artifícios comuns a essa superfície web onde, ainda hoje, misturadas entre si, verdadeiras legiões de humanos e robôs travam batalhas de hastag. Isso sem falar nas intermináveis solicitações de assinaturas das centenas de petições cujas fontes de criação e fins verdadeiros nem sempre são transparentes e devidamente observados, com conhecimento de causa.

É fato que ainda deve haver quem tenda a simplesmente reduzir de maneira excessivamente genérica a problemática desse cenário à expressões mais ou menos recentes, como, por exemplo, as fakenews. Quando, na realidade, o problema todo é mais complexo, não devendo, por esse motivo, nem ser compreendido somente com olhos no passado, nem ser passível de previsões muito seguras, uma vez que o quadro semicaótico apontado se encontra em plena vigência, não oferecendo tréguas ou distanciamento no tempo e no espaço.

Para além da boa documentação e das análises disponibilizas em seu livro, onde se inclui a denúncia sobre a participação do Pentágono no desenvolvimento de ferramentas comunicacionais e psicológicas visando a manipulação e o controle, Korybko compartilha um acontecimento decisivo que, segundo ele, encontra-se nas raízes do surgimento de estratégias desse tipo. Trata-se da contribuição decisiva de Edward Louis Bernays, sobrinho de Sigmund Freud, cujas ideias revolucionariam o campo da comunicação voltado para a Propaganda e as Relações Públicas, mais especificamente no âmbito da Política.

Edward Bernays era filho de uma das irmãs de Freud (Anna Freud Bernays) e de Ely Bernays, irmão da esposa de Freud (Martha Bernays Freud) e sobrinho, pela parte paterna, do professor de filologia clássica Jacob Bernays, tendo começado a atuar profissionalmente na década de vinte do século passado, nos EUA, que é para onde sua família havia se mudado, no ano de 1892 (Edward nasceu no ano anterior, 1891, em Viena).

Edward Bernays inventou métodos sofisticados de persuasão, manipulação e fabricação de consentimento. Suas técnicas não se baseavam simplesmente em artifícios linguísticos e imagéticos, uma vez que ele as elaborou valendo-se da familiaridade com algumas ideias desenvolvidas pelo seu tio (Freud), a respeito do inconsciente e do papel das linguagens em relação a esse.

Dizendo de outra maneira, Bernays não era psicanalista e muito menos teria tomado de empréstimo essa técnica, tal como em um hipotético ato de cópia e cola, para aplicá-la no campo da comunicação voltada para a propaganda e as relações públicas. O que Bernays fez foi desenvolver ideias novas e sob certo aspecto devastadoras, bem próprias ao seu campo de atuação, que era o das comunicações voltadas para as massas e multidões. Para isso, valeu-se de leituras sobre as psicologias de Gustave Lebon e Wilfred Trotter, dos trabalhos do seu contemporâneo Walter Lippmann e da adaptação de certas ideias percebidas no contato que tinha com Freud e alguns de seus colegas psicanalistas.

Como diz Korybko (35-36), a percepção de Bernays era tão acurada que muitas décadas antes do surgimento de plataformas como Instagram, Twitter, Facebook e Whatsapp, ele afirmava que “graças às vantagens das tecnologias de comunicação instantânea [da época] pessoas com as mesmas ideias e os mesmos interesses podem associar-se e organizar-se para promover uma ação conjunta ainda que habitem a milhares de quilômetros umas das outras”. Seus métodos de contaminação das massas por intermédio de discursos, escritos, imagens e gestuais simbólicos, dependiam de prévios planejamentos, minuciosos e bem organizados.

Essa era uma espécie de garantia de que as ideias transmitidas pelas palavras de determinada ação-alvo se tornaria uma “parte integrante das próprias populações”. E quando uma massa humana é convencida da racionalidade de uma ideia, diz ele, ela certamente entrará em ação (seja essa ideia de ordem política, ideológica ou social).

Ao longo de sua carreira, tanto pelo grau de elaboração, como pelo alcance, duas campanhas publicitárias promovidas por Bernays5 chamam muito a atenção: em uma delas, Bernays extrapola os objetivos imagináveis de um contrato de publicidade comum, estabelecido com uma empresa americana de alimentos que visava incrementar sua comercialização de bacon. Em vez de capturar potenciais consumidores privilegiando somente aspectos como sabor, imagem e preço, Bernays retira do seu arsenal ideário de propaganda o prestígio do discurso médico, da ciência, fazendo com que milhares desses profissionais da saúde, em todo território norte-americano, atestaram publicamente que tomar uma café da manhã reforçado é tomar um café da manhã saudável, forte, e que esse deve conter preferencialmente ovos e bacon. Com essa “sacada”, carimbado pela ciência médica com o poderoso “valor da verdade”, nasceria o lendário breakfast americano como indicativo de um modo de vida saudável (típico). Esse caso não só se tornou um sucesso de campanha publicitária, como marcou o que talvez tenha sido o começo da participação desses profissionais da saúde em peças publicitárias diversas, doravante.

Outra campanha notável elaborada por Bernays é descrita no livro Propaganda – como manipular a opinião na democracia (1928 [2004])6, no prefácio escrito por Normand Baillargeon (21-22). Trata-se de um trabalho realizado em 1929, a pedido de George Hill, presidente de uma empresa fabricante de cigarros (American Tobacco Company). Esse empresário acreditava que perdia metade do mercado potencialmente consumidor dos seus cigarros, no caso as mulheres, devido ao tabu que as proibia de aderir a esse hábito, na época.

Uma vez contratado para fazer a propaganda dos cigarros, Bernays decide consultar a opinião do psicanalista Abraham Arden Brill, um austríaco radicado nos EUA que se correspondeu com Freud até o fim da sua vida (1939). Desse encontro, Bernays retorna com a dica de que o “cigarro seria um símbolo fálico capaz de representar o poder sexual dos homens” e que, portanto, no seu plano de propaganda, ele deveria criar um vínculo entre o cigarro e alguma forma de contestação desse poder: assim, “estando de posse dos seus próprios pênis (simbólicos)”, as mulheres poderiam fumar.

A jogada propagandística de Bernays consistiu da criação da seguinte situação, previamente combinada, em minúcias, que ocorreu no popular desfile anual de Páscoa em Nova York, em 1929. Durante o desfile, um grupo de jovens mulheres que havia escondido cigarros sob suas roupas, de repente os tirou e os acendeu diante de jornalistas e fotógrafos que já haviam sido alertados sobre “as sufragistas que explodiriam de brilho”. Tal como um vírus, essa imagem se espalhou por todos os veículos midiáticos da época, circulando de boca em boca e formando a ideia de que as mulheres, já em luta há cerca de uma década pelo sufrágio universal, nada mais teriam feito do que iluminar, portando suas “tochas da liberdade”. Assim, o cobiçado mercado feminino de consumidores de cigarros foi conquistado, para a satisfação dos produtores e comerciantes do produto.

No que diz respeito à violência e destruição que esse tipo de arte de manipulação e condução das psiquês permite abarcar, não se deve esquecer o que as linguagens podem realizar, também, quando usadas em guerras convencionais e não-convencionais (aqui designadas por híbridas), assim como em campanhas genocidas.

Como exemplo, cabe apontar aqui dois fatos. Um deles é a menção feita ao espanto de Edward Bernays (32) quando um amigo seu jornalista, baseado na Alemanha, lhe contou que viu o livro Cristalizando a Opinião Pública, de autoria de Bernays, entre as obras sobre Propaganda presentes na biblioteca de Joseph Goebbels. Com essa revelação, ficou evidente para Bernays que o mentor das estratégias genocidas da propaganda nazista havia usado o seu livro, e que essa campanha de perseguição e destruição fora meticulosamente calculada e planejada.


O segundo fato foi a deposição de uma democracia na Guatemala, no ano de 1954, um Golpe de Estado que contou com a ajuda da CIA para derrubar o presidente Jacob Arbenz, eleito em 1951 (31-31). O golpe só se concretizou graças a uma agressiva campanha de ordem psicológica, orquestrada por Edward Bernays, um conjunto de ações baseadas em boatos, mentiras e desinformação, onde não faltou nem mesmo uma deliberada distorção de um projeto de reforma agrária elaborado pelo presidente deposto, uma manobra que a caracterizou como uma “ameaça comunista” (esse evento é observado com detalhes, por Jessé de Souza, no livro A Guerra contra o Brasil).

Vivemos hoje diversas mudanças de paradigma, em um mundo onde democracias, em diversas regiões, sofrem duríssimos abalos em seus alicerces, tal como se essas convulsões fizessem parte de uma estranha arquitetura do caos, planejada. Não por acaso, o primeiro capítulo do livro Propaganda, de Edward Bernays, que é dedicado à manipulação e condução das psiquês pelas linguagens, visando, entre outras coisas, a fabricação de consentimento, intitula-se Organizando o Caos.

Atualmente, essas mudanças de paradigma se refletem tanto no campo das relações presenciais como no das virtuais, seja porque encurralados por uma gravíssima pandemia, seja pelas necessárias revisões sobre o uso que se faz, até o momento, dos sistemas e dispositivos tecnológicos com os quais se pode estabelecer ou cancelar contatos e relações.

Aos inúmeros dispositivos digitais criados para a coleta de dados, gostos, tendências, opiniões e decisões, soma-se os de captura das impressões afetivas e emotivas, em uma perspectiva real de controle e condução de pensamentos.

Nesse cenário, tristezas, alegrias, sonhos e medos, também podem ser manipulados. Continuando a ser um equívoco, para se saber como agir, buscar entender um momento de ruptura dessa natureza com o olhar demasiadamente no passado, na expectativa de prever o que virá.

*Lucio Lauro B. Massafferri Salles é professor e psicólogo. Graduado em Filosofia (UFRJ) e Psicologia (CEUCEL), Doutor e Mestre em Filosofia (UFRJ) e Especialista em Psicanálise (USU). Realiza atualmente pesquisa de Pós – Doutorado em Filosofia na UERJ.

Citações:


[2] https://tutameia.jor.br/brasil-e-alvo-de-guerra-hibrida/ (entrevista de Andrew Korybko para o Tutaméia, na qual ele afirmou, em 2018, que o Brasil era alvo de uma Guerra Híbrida).

[3] https://jornalggn.com.br/opiniao/o-caos-entre-a-virtualidade-e-o-apagamento-das-relacoes-presenciais-por-lucio-lauro-b-massafferri-salles/ (nesse texto abordo uma questão relativa ao apagamento das relações virtuais no contexto da internet).

[4] https://www.ted.com/talks/carole_cadwalladr_facebook_s_role_in_brexit_and_the_threat_to_democracy?language=pt-br (link para a palestra/denúncia da jornalista investigativa britânica Carole Cadwalladr).

[5] As duas estão presentes no livro de Bernays Propaganda – como manipular a opinião na democracia e são analisadas por Jessé de Souza, no seu livro A Guerra contra o Brasil (págs.73-75).

GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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