FUTEBOL: UM ESPELHO DA SOCIEDADE

"Ainda há uma forte xenofobia no futebol brasileiro por parte do público, dirigentes e imprensa. Para fazer um teste, basta cogitar um estrangeiro como técnico da seleção"

Imagem: Fernando Frazão | ABr


Entrevista por Felipe Antonio Honorato*, Pragmatismo Político

Guilherme Freitas é um jornalista que, há anos, cobre a natação e esportes aquáticos: trabalhando para uma importante publicação especializada no assunto (Swim Channel), já cobriu eventos como os Jogos Olímpicos do Rio-2016, Campeonatos Mundiais de natação e Jogos Pan-Americanos.

Apesar disto, em sua caminhada como pesquisador, tem se debruçado sobre um tema um pouco distinto da natação: em seu mestrado em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo, escreveu uma dissertação que olha sobre as intersecções entre o futebol, as migrações, e a formação de seleções nacionais multiétnicas.

Conversamos com Guilherme sobre estes e outros temas, num papo que nos mostra que o futebol vai muito além de uma distração apolítica – ele pode ser uma grande arena de discussões sociológicas.

1) Vamos começar falando um pouco sobre o futebol italiano. Quando o Napoli, time de Nápoles, sul da Itália, ganhou seus dois títulos nacionais no final da década de 1980, com um time que contava com jogadores do calibre de Maradona e Careca, aquilo teve uma simbologia muito grande: era o sul, pobre, agrário, que vencia o norte, rico, industrializado. Hoje a Itália tem um governo nacional conservador, que prega contra migrantes, refugiados, que aposta no discurso de que a Itália é dos italianos; parece que, não à toa, vemos crescer, dentro do campeonato italiano, casos de racismo contra jogadores negros e estrangeiros – Koulibaly, por exemplo, zagueiro do próprio Napoli, foi, reiterada vezes, alvo de comentários ofensivos. Além de tudo isso, um dos confrontos mais tensos dentro do universo futebolístico italiano é Livorno x Lazio, pois o Livorno é um time de torcida assumidamente de esquerda, enquanto a torcida da Lazio é abertamente adepta do fascismo. Tendo em vista tudo isso, gostaria de começar te perguntando: o futebol mimetiza a sociedade na qual está inserido, é um espaço de discussão, de tensão social e política, ou não passa de ópio do povo?

Acredito que o futebol seja sim um importante meio de discussão de temáticas sociais, culturais e políticas porque ele tem um alcance muito grande, praticamente chegando a todas as classes sociais. Além disso, é muito mais do que uma modalidade esportiva. O futebol de certa forma é um reflexo da sociedade atual em que vivemos. Basta ver como alguns temas que foram assuntos no mundo recentemente também chegaram as discussões com o futebol, casos como migração, os refugiados, a homofobia, por exemplo. E vejo que aos poucos ele vem perdendo essa pecha de ópio do povo, visto que um maior interesse de pesquisadores de várias áreas sobre o assunto.

2) O futebol também serve como espaço de discussão sobre migração, colonialismo e neocolonialismo?

Sim, sem dúvidas. Por ser um fenômeno global e estar presente em todos os países do mundo, o futebol consegue ter essa capacidade de ser não apenas uma modalidade esportiva como também um fenômeno sócio-cultural. Através dele existem muitas histórias e fatos que aconteceram relacionados a migração, colonialismo e neocolonialismo. Acredito que o futebol seja um dos poucos campos onde isso acontece além da política e economia. Exemplo disso são diversos estudos, livros e pesquisas sobre estas temáticas.

3) Você acha que a lógica de exploração e espoliação colonial se aplicou ao futebol? De que maneira?

Sim, mas de uma forma mais econômica. Até os anos 1980 e 1990 os clubes sul-americanos conseguiam manter suas principais estrelas em suas ligas nacionais, mas com a sanção da Lei Bosman e a globalização do futebol em meados dos anos 1990 os clubes europeus passaram a influenciar o mercado da bola e enfraquecer seus rivais da América do Sul, principalmente. Dessa forma a mão-de-obra (nesse caso pé-de-obra) passa ser importada para Europa. Um exemplo é a grande disparidade econômica que existe entre o futebol europeu e o resto do mundo quando ocorre o Mundial de Clubes. Desde 2005 quando a FIFA passou a realizar o evento anualmente, em apenas três vezes um sul-americano ganhou.

4) E hoje? Você acha que o futebol segue uma lógica neocolonial?

De certa forma sim. Um exemplo claro é que para o jogador ser considerado “world class” ele precisa estar na Europa. É claro que lá estão as melhores equipes e melhores estruturas, mas se o cara não estiver lá nunca pode ser considerado como jogador de ponta. Tivemos o caso do Neymar quando estava no Santos. Estava jogando muita bola, mas sempre aparecia alguém para dizer que ele só seria grande quando jogasse na Europa. Outra coisa é o prêmio da Bola de Ouro da FIFA. Se o atleta não for de clube europeu jamais será indicado. Em 2005 o Rogério Ceni teve o nome cogitado para concorrer, mas foi totalmente ignorado mesmo tendo sido campeão mundial, da Libertadores e eleito o melhor jogador do mundial da FIFA.

5) Na época da Copa do Mundo de 2018, em que a seleção francesa acabou se sagrando campeã, muito se comentou sobre o quanto do título aquela seleção devia à África. Na prática, as coisas não são tão simples assim. A primeira coisa que me vem à cabeça são os processos de identificação cultural destes jogadores que, muitas vezes, viveram toda sua vida na diáspora. Você poderia falar um pouco sobre isso?

Não concordo com essa coisa de dizer que é um título da África e dos imigrantes. Esses jogadores, em sua grande maioria, são franceses e praticamente passaram a vida toda na França ou em outros países da Europa onde jogam profissionalmente. Generalizá-los como “imigrantes” é algo ruim também para outros anônimos iguais a eles: os filhos de imigrantes que nasceram na França. Eles devem ser tratados como cidadãos franceses, independentemente das origens de seus familiares pensando também na questão social e de inserção dos descendentes na sociedade. E sim, também existe esta questão de identificação que vai variar de atleta para atleta.

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Alguns terão vínculos mais fortes com as raízes de seus ancestrais, enquanto outros não. Existe um bom documentário no Netflix chamado Le K Benzema, sobre o atacante francês. Há um trecho onde o Karim Benzema afirma que jamais viajou para a Argélia, mesmo sendo um ídolo no país onde nasceram seus pais e sendo chamado constantemente de forma pejorativa de argelino pela extrema direita francesa. Ele disse ainda que não defenderia a seleção argelina porque se considera e se identifica como francês. Outro exemplo é quando as seleções da pátria dos pais, como Argélia ou Camarões, por exemplo, sonda um jovem jogador da base para que ele se naturalize e jogue pela seleção africana ao invés da França. Muitos recusam porque não se vêem como argelinos ou camaroneses, por exemplo. Enquanto outros podem sentir uma identificação maior e aceitar o convite. Cada caso é um caso.

6) Qual era o background étnico da seleção francesa campeã mundial na Rússia? E da seleção francesa campeã da Copa do Mundo de 1998?

Os jogadores da seleção francesa bicampeã mundial do ano passado tinham origens bastante diversas. Dos 23 convocados, 21 deles tinham pelo menos um avô ou avó com origem estrangeira. As exceções eram Florian Thauvin e Benjamin Pavard. O curioso é que entre esses atletas com origens estrangeiras havia uma forte miscigenação entre seus pais e avós. Por exemplo, Kylian Mbappe tem descendência camaronesa e argelina. Presnel Kimpembe tem origens do Congo e do Haiti. Ousmane Dembélé conta com ainda mais raízes estrangeiras oriundas do Mali, Senegal e Mauritânia. E isso também ocorreu com os jogadores de origem europeia como o Antonie Griezmann com raízes em Portugal e Alemanha e o Hugo Lloris que é descendente de espanhóis e catalães.

Uma mostra de como também houve uma grande miscigenação entre essas populações migrantes na França ao longo dos tempos. E chama atenção que apenas três (Samuel Umtiti, Thomas Lemar e Steve Mandanda) nasceram fora da França e se naturalizaram. A maioria é nascida e criada na França. Já no time de 1998 há menos atletas com origens estrangeiras como um todo (14 de 22) e um número maior de nascidos fora da França (Patrick Vieira, Christian Karembeu, Lilian Thuram e Marcel Desailly). Uma mudança de perfil que aconteceu em várias seleções da Europa com o passar dos anos, com os atletas naturalizados sendo cada vez menores em relação aos descendentes de imigrantes que nasceram já dentro de seus territórios.

7) Se olharmos para a última copa do mundo, tivemos 3 seleções marcadas pela influência da imigração e da multiplicidade de origens étnicas de seus jogadores nas semifinais: a França, que foi campeã, Bélgica e Inglaterra. Na última Eurocopa, disputada em 2016, o panorama foi o mesmo: nas semifinais, eram 3 seleções marcadas pela influência da imigração e da multiplicidade de origens étnicas de seus jogadores – França, Alemanha e Portugal. A Alemanha, inclusive, foi campeã mundial na copa disputada no Brasil, em 2014. Você acha que dá para estabelecer um paralelo entre obter sucesso, no futebol atual, e saber lidar e absorver diversidade no plantel do selecionado nacional?

Acredito que sim, mas com ressalvas. O caso da França de 1998 é bastante emblemático por isso. Eles foram alçados a heróis nacionais, aplaudidos por milhões na Champs Elysees e Zinedine Zidane foi cotado até para ser presidente da República pelos fãs. Porém, o fracasso em 2002 com a eliminação na fase de grupos e o amistoso com a Argélia no ano anterior que não terminou devido ao tenso clima nas arquibancadas e a invasão de campo, transformaram os heróis de ontem nos vilões de hoje. E isso sempre ocorre na França quando a equipe vai mal em Copa. Automaticamente fazem uma caça as bruxas e muitas vezes o comportamento dos imigrantes e seus descendentes é colocado em prova.

Se esse time campeão de 2018 fracassar na próxima Copa de alguma forma irão dizer que faltou comprometimento e profissionalismo aos atletas, principalmente aos descendentes. Na Inglaterra também há uma relação desse tipo com jogadores negros sendo bem mais cobrados do que os brancos. Na Alemanha pelo menos não houve uma reação dessa forma após o pífio Mundial, embora Mesut Ozil tenha abandonado a seleção por acusar a Federação Alemã de ser xenófoba com ele. É uma questão delicada e esse paralelo entre futebol e sociedade é muito possível de ser feito.

8) Esta discussão também se aplica a seleções femininas?

Então, este ano teremos a Copa do Mundo de futebol feminino e estou fazendo um levantamento sobre o histórico das equipes multiculturais da Europa neste evento que irei publicar em meu blog em breve. E assim como acontece no masculino, as equipes femininas também estão tendo um aumento de atletas com este perfil multiétnico. É um número bem menor em relação aos homens, mas mostra que mulheres com raízes estrangeiras também estão se destacando e chegando às seleções nacionais.

9) Na sua opinião, o futebol brasileiro sofreu influência dos intensos fluxos migratórios que chegaram ao país entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX?

Sim, sem dúvida. Se pegarmos o histórico dos clubes brasileiros muitos tiveram influência estrangeira. Há os clubes que tiveram forte influência de ingleses que trabalhavam em ferrovias, principalmente em equipes do estado de São Paulo. Há os clubes que abrigaram colônias de imigrantes como italianos (Palmeiras e Cruzeiro), portugueses (Vasco e Portuguesa), alemães (Grêmio), etc. Sem falar também na participação de técnicos húngaros como Bela Guttmann e Dori Kruschner no Brasil entre as décadas de 1930 a 1950 e influenciaram de certa forma o estilo brasileiro de se jogar futebol.

10) Você acha que nosso futebol será influenciado de forma derradeira pelos novos fluxos migratórios que começaram a chegar ao país ou se intensificaram a partir dos anos 2000 – sírios, haitianos, angolanos, congoleses, peruanos, bolivianos… ?

Sim, acredito que isso vai acontecer. Não dá para prever o futuro e saber ao certo, mas acredito que isso seja possível como aconteceu na Europa. Lá os imigrantes e posteriormente seus descendentes passaram a ter uma integração social maior através o futebol e isso pode muito bem se repetir aqui em um país que revela muitos jogadores todos os anos. Existem alguns casos já. Houve um time no Rio de Janeiro formado por haitianos chamado Pérolas Negras que jogou a Copa São Paulo de juniores uns anos atrás. Os principais clubes bolivianos montaram escolinhas e centros de treinamentos em São Paulo visando encontrar possíveis promessas que vivem no Brasil. E tem a Copa dos Refugiados com amadores que acontece todos os anos. Vai que lá não aparece algum jovem com potencial para se profissionalizar? Meu único temor seria a recepção desses imigrantes ou descendentes jogando em grandes clubes e com chances de chegar a seleção. Afinal, ainda há uma forte xenofobia no futebol brasileiro por parte do público, dirigentes e imprensa. Para fazer um teste, basta cogitar um estrangeiro como técnico da seleção. Ainda há uma enorme gritaria xenófoba e nacionalista infelizmente.

11) Para terminar: para quem quiser ler sobre a influência das migrações e do colonialismo no futebol, quais são suas dicas? Fale, também, um pouco sobre sua dissertação de mestrado e onde ela pode ser acessada.

Minha dissertação de mestrado intitulada “As seleções de futebol multiculturais da União Europeia” esta disponível na biblioteca virtual da USP que pode ser acessada aqui: 
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100135/tde-25062017-181056/pt-br.php.

Minhas pesquisa aborda as questões de identidade e imigração na União Europeia, utilizando as seleções de futebol como instrumento de pesquisa. Também publiquei alguns artigos em revistas acadêmicas e todos esses materiais estão em um blog pessoal que montei ano passado. 

Quem tiver interesse pode acessar aqui: https://guilhermefreitasacademico.wordpress.com/.

Quanto a livros indico o trabalho do professor francês Yvan Gastaut no livro “Le métissage par le foot” sobre a questão na identidade nacional e futebol na França, “Géopolitique Du Football” do francês Pascal Boniface que mescla temas das relações internacionais com o futebol e os clássicos “Como o futebol explica o mundo” do americano Franklin Foer e “Sociologia do futebol” do britânico Richard Giulianotti. São livros que trabalham essa dinâmica de futebol e migrações, mas aconselho ler também os principais periódicos acadêmicos sobre esportes, identidade e imigração que sempre contam com trabalhos interessantes sobre essas temáticas.

Sobre o futebol brasileiro, que você me perguntou mais acima, é sempre bom ler o livro “O negro no futebol brasileiro” de Mário Filho. Outra boa dica é o Netflix, que conta com alguns documentários sobre essas questões de migração e futebol.

*Felipe Antonio Honorato é graduado em Políticas Públicas e mestrando em Estudos Culturais pela USP, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça pela UnB e colaborou para Pragmatismo Político.

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