Na última semana, o filme pró-ditadura militar “1964, o Brasil entre armas e livros” ganhou atenção nas redes sociais e se tornou um dos vídeos mais assistidos no Youtube, superando 3 milhões de acessos em menos de três dias.
O filme capitaliza em cima da controvérsia, gerada pelo governo Bolsonaro, de comemorar a data do golpe como uma “revolução democrática” por meio de contas oficiais do Planalto.
Simpatizantes do atual governo têm uma rede virtual muito ativa e sabem utilizá-las para mexer com a opinião pública. A receita é explorar controvérsias e polarizar a sociedade em torno de temas ideológicos.
Como funciona essa estratégia?
Já não há dúvida de que as redes sociais influenciaram decisivamente nas eleições de 2018, apesar de restarem dúvidas sobre como isso foi feito.
As redes sociais dão voz a diversos movimentos e personagens que antes eram negligenciados, mas também dão margem para manipulações.
Elas foram usadas para acelerar perseguições a grupos minoritários em Myanmar e difundir discurso de ódio a mulheres no Paquistão, além de influenciar de diversas maneiras eleições na Europa e Estados Unidos.
Essa instrumentalização das redes tem uma fórmula comum, mas que é replicada para cada contexto político. Bolsonaro seguiu em 2018 a cartilha usada por Trump em 2016.
Além de ampliar a cacofonia, as redes sociais também incentivam políticos a continuar em campanha mesmo após terem vencido eleições.
No Brasil, redes simpáticas aos valores de direita no Brasil não foram só um mecanismo de campanha, mas continuam sendo uma ferramenta de mobilização da opinião política no governo atual.
Um estudo sobre as eleições de 2018 mostrou que redes de direita foram três vezes menores que redes de centro-esquerda em termos absolutos, mas geraram cerca de 10 vezes mais conteúdo do que elas.
Em outras palavras, ainda que minoritárias, ideias associadas à direita pareceram maioria nas redes sociais.
O vídeo que repercutiu nas redes se beneficiou de uma rede que podemos separar em dois grupos: páginas de baixa credibilidade jornalística e páginas de influenciadores.
Cada qual tem seu papel na transmissão de informação, e ambas são ativadas sempre que o objetivo é mexer com a opinião das pessoas nas redes sociais.
Veja como isso acontece em três estágios:
Ato um: crie uma controvérsia
A relativização do golpe militar de 1964 vem acontecendo de maneira esparsa desde a campanha, mas somente agora essa relativização ganha ares de suposta credibilidade com a publicação do documentário.
O filme, produzido pelo portal Brasil Paralelo, visa dar voz a especialistas que recontam a história do golpe como um movimento democrático.
É algo que guarda semelhanças com a associação feita por membros do governo entre nazismo e esquerda ou a invenção de fatos como o Kit Gay, por exemplo.
O fato por si só não tem o poder de gerar debate popular, mas é ai que as redes se ativam para esse fim.
Ato dois: chame atenção sobre ela
Controvérsia criada, é hora de chamar atenção sobre ela. Tradicionalmente, a mídia é responsável por transmitir à população as informações sobre o que acontece nas esfera política, econômica e social.
Mas em tempos de redes sociais, a informação não é mais monopólio da mídia, e outros atores se usam delas para dar um ar de credibilidade à questão, sem que estejam sujeitos a padrões éticos de jornalismo como meios de comunicação tradicionais.
Compilei as repercussões geradas em torno do filme nos três dias depois que ele foi carregado no YouTube. Coletei dados de noticias contendo o título pelo Buzzsumo, uma plataforma que analisa a repercussão de um tema em diferentes redes sociais.
Antes do lançamento, podemos ver a movimentação partindo dos sites Conexão Política e Avança Brasil.
Página de publicação Compartilhamentos Facebook Twitter
Conexão Política 2.920 1.196 1.724
Avança Brasil 748 747 1
A primeira teve sua página de Facebook criada em 3 de janeiro de 2019, e se intitula como imprensa livre, ainda que não seja claro quem está por trás dela:
A página Avança Brasil, por sua vez, parece ter mais conhecimento sobre o ponto da carne do que sobre a política brasileira:
Antes nomeada Montana Grill Express, a página passou por sucessivas mudanças de nome, passando a compartilhar posts políticos em 2014 ao mesmo tempo em que mudou de nome.
No caso mencionado, a página foi responsável por dar atenção inicial ao lançamento do vídeo e, num momento posterior, por compartilhá-lo em suas redes no Facebook e Twitter.
Em um segundo momento, vemos o fenômeno se multiplicar em páginas similares e de baixa credibilidade jornalística.
De acordo com as buscas na seção de notícias do Google, das 23 notícias sobre o filme nos dois primeiros dias após sua estreia, apenas 10 eram de meios de comunicação com certa credibilidade (Veja SP, O Globo, Folha de São Paulo, Correio Braziliense, Gazeta do Povo, Poder 360, Jovem Pan e Gaucha ZH).
As outras 13 foram compartilhadas por páginas de baixa credibilidade ou sem reputação como meio de comunicação (entre elas Estudos Nacionais, Republica de Curitiba, Pleno News, Boletim da Liberdade, Renova Midia, F5 e Diario do Centro do Mundo).
Ato três: viralize
Com a multiplicação de informação por meio de páginas de baixa credibilidade, a atenção é disparada nas redes sociais, que passam a repercutir o tema.
Com o tempo, grandes meios de comunicação com maior audiência também passam a falar do tema, gerando ainda mais atenção dentro e fora das redes.
Os chamados “influenciadores”, atores com grande número de seguidores, são um ponto essencial para espalhar a mensagem e criar a polarização. Usei a ferramenta Crowdtangle para identificar quem são esses multiplicadores.
Desde a sua postagem no site Brasil Paralelo, o vídeo foi replicado pelos seguintes atores a partir das 19 horas do dia 2 de Abril, gerando milhares de curtidas e compartilhamentos por usuários nas redes sociais.
O gráfico abaixo mostra as 50 páginas mais compartilhadas com o link do vídeo no YouTube. Como em muitos casos, a mesma marca tem páginas no Facebook e no Twitter, são apenas 34 nomes no gráfico.
Quanto maior o círculo, maior o engajamento do post pelos usuários:
Eduardo Bolsonaro, Luciano Hang, Movimento Avança Brasil (ex-Montana Grill) e Bolsonaro Opressor 2.0 foram as páginas com maior impacto em termos de compartilhamentos por outros usuários, tanto no Facebook como no Twitter.
No campo dos influenciadores, também encontramos o mesmo fenômeno: páginas de origem duvidosa se passando por meios de informação, como no caso da “Últimas Notícias Express”, inicialmente chamada “Musicas Inesquecíveis” em 2014.
Das 50 fontes mais compartilhadas do vídeo, 27 delas estão atreladas a páginas de movimentos, supostos sites de notícias e outros nomes gerais (como Bolsonaro Opressor 2.0, Canal da Direita, Senso Incomum, Inteligentsia, entre outros).
O resto são pessoas reais e, como era de se esperar, Eduardo Bolsonaro e Luciano Hang são os principais representantes nessa categoria. Eles servem como eixos centrais de transmissão devido a grande quantidade de seguidores.
A maior atividade de posts é identificada entre as 19 horas e meia noite do dia 2, quando o vídeo passa a viralizar nas redes. Se olharmos com atenção, é clara a estratégia gerada pelas postagens em sincronia das redes associadas à direita, em especial a conta de Eduardo Bolsonaro.
De acordo com buscas no Youtube, com dados do Google Trends, o pico de buscas pelo vídeo se dá às 19 horas do dia 2 de Abril (próximo do horário do post na conta de Eduardo Bolsonaro, que posta o vídeo às 19:09 no Twitter e às 19:15 no Facebook).
Para potencializar ainda mais o efeito viral, o vídeo original contém um link que facilita ao usuário a transmissão do vídeo em outras redes, como o WhatsApp. A plataforma foi central para a estratégia de viralização das mensagens de Bolsonaro nas eleições de 2018.
De forma resumida, o que temos é um fenômeno de geração de conteúdo controverso, ativação de redes estruturadas, disseminação por meio de portais de baixa credibilidade jornalística e multiplicação através de influenciadores.
O que pode ser feito?
Esse ciclo de atenção coloca temas controversos no centro do debate público e político, reforçando narrativas que não teriam espaço de maneira natural em uma democracia.
Do lado de companhias como Facebook, Twitter e Google, deve haver uma preocupação maior de como essa informação é transmitida.
É natural que elas evitem retirar certos conteúdos sob o risco de serem acusadas de censura, mas elas não podem abdicar da responsabilidade de ensinar a seus usuários como seus produtos funcionam.
Um dos caminhos é o fortalecimento de checadores de notícias, assim como de iniciativas de investigação em instituições acadêmicas e em organizações da sociedade civil. Outra forma de ajudar é dando acesso aos dados, para que mais análises como esta sejam feitas.
Precisamos de mais vozes no debate, mas essas vozes precisam se comprometer com um jornalismo de qualidade baseado em fatos. No Brasil, o churrasqueiro de 2013 é quem informa a sua decisão política em 2018.
A manipulação das redes sociais ainda é uma caixa preta; saber o que está dentro dela fará cada vez mais diferença para os rumos da democracia.
Rafael Goldzweig, Exame
0 Comentários