OS DOIS ANOS DE ANGÚSTIA DE UM CONDENADO À MORTE INJUSTAMENTE

Se na maior economia mundial, no país aclamado como o berço do liberalismo inocentes são condenados à morte, o que dizer sobre a aplicação da severa pena em países menos afortunados, com democracias emergentes e sistemas judiciários bem mais suscetíveis à corrupção e ilicitudes? Não é absurdo imaginar que no Brasil apenas pretos e pobres seriam executados


O que estes homens têm em comum? Todos são inocentes que foram condenados à morte, ficaram anos presos e por razões peculiares conseguiram se salvar antes de serem executados. Infelizmente, a maioria dos inocentes não consegue (Imagem: Pragmatismo Político)


A discussão em torno da pena de morte no Brasil não costuma ser frequente. Ocorre quando a população é confrontada com casos delicados e polêmicos, a exemplo da recente execução do traficante brasileiro Marco Archer, na Indonésia. Nos EUA, por sua vez, a pena capital está presente no cotidiano do cidadão estadunidense, já que se trata de uma legislação permitida em 32 dos seus 50 estados.

É comum ver, em alguns estados campeões em números de condenados à morte, como Texas e Califórnia, manifestações populares suplicando clemência para os apenados ou exigindo mudanças nas leis que permitem a morte por determinação judicial.

Não raro, também, além de extremamente preocupante, são os casos dos injustamente condenados – e neste cenário há uma reflexão sempre relevante: se na maior economia mundial, no país aclamado como o berço do liberalismo e da democracia inocentes são condenados à morte, o que dizer sobre a aplicação da severa pena em países menos afortunados, com democracias emergentes e sistemas judiciários bem mais suscetíveis à corrupção e ilicitudes? Não é absurdo imaginar que no Brasil apenas pretos e pobres seriam executados.

Em 2014, Ricky Jackson e Wiley Bridgeman, dois homens negros que estiveram a um fio de serem executados na cadeira elétrica ganharam liberdade após 39 anos presos injustamente. Uma testemunha, talvez acometida por enorme peso na consciência, resolveu admitir, depois de tanto tempo, que foi forçada pela polícia, em 1975, a afirmar que ambos foram os responsáveis por um assassinato de um empresário branco. Ricky e Wiley desabaram em lágrimas ao serem libertados. “A língua inglesa não serve para descrever o que estamos sentindo”, afirmaram.

Os irmãos Leon Brown e Henry McCollum, que coincidentemente(?) também são negros, foram igualmente vítimas de uma injustiça irreparável. Depois de 30 anos na cadeia, testes de DNA realizados no ano passado os livraram da pena de morte. Eles seriam mortos por um crime que não cometeram: um estupro seguido de morte de uma menina de 11 anos. Não havia nenhuma prova física que os vinculasse ao crime. Os irmãos, que sofrem de deficiência intelectual, “confessaram” o crime quando eram adolescentes após horas sendo interrogados pela polícia.

O caso de Ron Keine também é emblemático e propositalmente foi selecionado para intitular esta publicação. Inocente condenado à morte, Ron deu um comovente depoimento à BBC sobre a angústia que viveu nos dias, meses e anos que antecederiam a sua execução. Restando nove dias para ser executado, ele foi salvo quando o verdadeiro assassino decidiu se entregar. O ex-condenado hoje dá palestras sobre os inocentes apenados e é diretor de uma organização contra a pena de morte. Confira abaixo trechos da história impressionante de Ron Keine:

“Estava viajando com cinco amigos da Califórnia para Michigan para visitar outros amigos. Em um dos Estados por onde passamos, Novo México, fomos presos por homicídio. A gente não levou muito a sério, fizemos piada. Então eles nos colocaram na cadeia e pensamos: tudo bem, a qualquer momento, vão descobrir quem fez isso.

A gente acreditava na Justiça. Eu achava que a Justiça não cometia erros. Meu Deus, anos depois eu aprendi: tantos erros são cometidos! Há 160 pessoas que, assim como eu, estavam no corredor da morte e descobriu-se que eram inocentes. Quatro meses depois, nos levaram a julgamento e nos colocaram no corredor da morte.

Estávamos trancados em celas individuais, num grande corredor. Só saíamos dali se o advogado viesse nos visitar. Não tínhamos direito a exercícios nem a banho. Por dois anos eu não tomei banho. Girava a torneira da pia, sentava debaixo dela e deixava a água cair.

No corredor da morte eu fazia uma coisa horrível. Tinha um calendário na parede e ia colocando um x em cada dia. Fiz um círculo bem grande no dia que eu seria executado. Todos os dias você acorda e pensa: vou morrer em poucos dias. Dói. Quando vai chegando mais perto da execução, as pessoas ficam perdidas. Não sabem quem são, o que são. Há relatos de pessoas que foram levadas para o local em que seriam mortas e disseram: deixei minha sobremesa na mesa, vou voltar a tempo de comer? Elas ficam desorientadas, nem sabem que vão morrer.

Nove dias antes da minha execução, um homem estava andando na rua e disse que Deus falou a seu coração. Ele foi até a igreja mais próxima e confessou que tinha cometido o assassinato. E só foi assim que saímos. Ele era um policial e, por isso, não foi condenado à morte. Ficou na prisão por sete anos.

A gente quase não conseguiu sair mesmo depois que o cara confessou. A lei americana diz que, se não há novas evidências do crime em um prazo determinado, elas não podem mais ser usadas. Na Virgínia, por exemplo, eram seis semanas. Se depois de seis semanas descobrissem o verdadeiro assassino, você seria executado mesmo assim, porque o prazo havia passado. E vários juízes não queriam assumir o caso. Eles sabiam que éramos inocentes, mas não queriam nos deixar sair porque isso pegaria mal.

Fomos ao tribunal novamente e o perito que, dois anos antes, havia nos incriminado confessou que nem sequer tinha visto o corpo. Ele confessou que mentiu no nosso julgamento. Disse que o promotor pagou US$ 25 mil para que ele mentisse.

O sistema nos EUA é corrupto. Promotores mentem para matar as pessoas. E se você não tem dinheiro para um bom advogado, você vai morrer. Se você é negro, ou hispânico, não integra júri; se não acredita na pena de morte, não integra o júri. Todas essas leis são contra o pobre.

Sempre que você dá a alguém o poder de matar outra pessoa, ela vai fazer isso. A única forma de acabar com isso é tirar das pessoas o poder de matar. Este poder corrompe. Atualmente, há mais ou menos uma dezena de países que têm pena de morte. No mundo ocidental, além dos EUA, só Belarus, e eles só tem uma pessoa no corredor da morte.

Há pessoas nos EUA que pegaram prisão perpétua por maconha e, no Estado vizinho, a maconha foi legalizada. Elas ficarão na cadeia pelo resto das vidas e, no Estado vizinho, você pode parar na calçada e fumar maconha.

Voltando a minha história, esses promotores nos incriminaram para inocentar o colega deles, que era policial. Eles chamam isso de cortesia profissional. Dois terços de todas as condenações à morte nos EUA são modificados por outras instâncias, e a principal razão é má conduta dos promotores. Isso significa que o promotor mentiu. Mas no corredor da morte eu achava que os promotores haviam se enganado. Só quando saí e descobri que eles haviam mentido eu comecei a ficar com muita raiva.

Eu odiava as pessoas que haviam feito aquilo comigo. Durante anos eu deitava na cama e não conseguia dormir de ódio. Muitos anos depois eu conheci uma freira e ela me ensinou a perdoar. Isso foi muito, muito difícil de fazer. Então, em 1998, chamaram vários de nós para fazer uma apresentação para o governador de Illinois para tentar por fim à pena de morte. E ele acabou mesmo com isso.

Cada um tinha que falar uma frase. A minha era: Eu sou Ron Keine e, se o Estado de Novo México tivesse ido em frente, eu estaria morto hoje. Cada um de nos levantou e falou essa frase. Foi tocante, havia mais de 70 pessoas.

Depois disso percebi que havia outras pessoas como eu. Na maior parte das vezes as pessoas são inocentadas e ninguém nem fica sabendo delas. Começamos a conversar e formamos um grupo, Witness of Innocence (Testemunhas da Inocência). Trabalho com eles há mais de dez anos. Viajo e falo sobre a pena de morte. Também escrevo artigos para jornais, revistas etc.

A gente também ajuda os outros membros. Temos um fundo para emergência. Se alguém não tem dinheiro para comida, não pode pagar a conta de luz, mandamos um cheque. O problema é que, quando você sai do corredor da morte, mesmo sendo inocente, você não consegue emprego. Algumas pessoas ficam presas por 20 anos, elas nem sabem usar um computador.

Se disserem na entrevista de emprego que passaram os últimos 20 anos no corredor da morte, serão expulsos. Estão velhos, não estudaram, não trabalharam. Então às vezes eles não têm nem comida. Eu amo meu trabalho. Se precisasse, faria de graça.”

Ron Keine também comentou a execução do brasileiro Marco Archer, fuzilado no último domingo na Indonésia. “É inacreditável e totalmente ridículo matar alguém por tráfico de drogas”, afirmou.
Ron Keine e a esposa (divulgação)

Para longe de divagações superficiais acerca do tema, é indicado o Ensaio Sobre a Pena de Morte, do filósofo italiano Norberto Bobbio. O documentário Paraíso Perdido 3: Purgatório também revela um retrato fiel das injustiças que podem ser perpetradas em países e estados onde a pena de morte é permitida.

Finalmente, chama a atenção uma característica presente em todos os episódios de inocentes condenados à morte: eles foram vítimas da corrupção e da desumanidade dos donos do poder. Seja trancafiados durante horas em escusos interrogatórios policiais ou pela falta de escrúpulos de “promotores de justiça”. Por sorte, alguns sobreviveram para contar suas histórias.

*Luis Soares é escritor, colunista e editor de Pragmatismo Político

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