NÃO HÁ NOBREZA EM TOLERAR QUEM JÁ SE PARECE COM A GENTE



Felizardo T. B. Costa*

Falar sobre racismo por vários motivos é sempre incômodo. sobretudo para quem sofre, evidentemente porque a pessoa sente na pele o efeito deste tipo de discriminação e a procura de reparação (legal) não torna necessariamente a vivência da situação menos constrangedora, muito pelo contrário, pois invariavelmente a própria busca por justiça pode se tornar um calvário. Seja pela exposição da vítima, pois ela precisa de explicar várias vezes o ocorrido e nos casos em que os agentes de justiça não entendam ela precisa de explicar também porquê aquele evento está sendo denunciado como racismo.

Não é incomum vermos atos de racismo serem transformados em injúria racial (esta permite que o acusado sai sob fiança enquanto o outro é um crime inafiançável). Esta situação pode trazer pelo menos dois problemas para quem sofreu a discriminação: (1) Uma descrença na justiça devido ao sentimento de impunidade perante a transformação de um crime de racismo em uma infração menor que permite que o agressor saia mais ou menos tranquilo e (2) O desconforto que a vítima pode sentir por aparentemente não se ter dado a devida consideração a sua versão da história, ou seja ela foi minimizada, como se a pessoa tivesse acrescentando coisas para parecer maior do que realmente era.

É sobre este segundo ponto que gostaria de falar, tentando problematizar algo que me parece cada vez mais corrente, sobretudo nos grupos de discussão que se criam nas redes sociais. Vou usar a expressão usada por várias outras pessoas “o mimimi do racismo”.

Minha compreensão sobre o uso desta e de outras expressões equivalentes, me parece ser, notadamente uma tentativa de silenciamento das reivindicações de pessoas que se envolvem na luta pela igualdade de direitos em uma sociedade que é assumidamente multirracial, mas que infelizmente só exerce a tal da democracia racial discursivamente, porquanto na prática cada vez mais as pessoas que se levantam para falar alguma coisa a respeito são consideradas como diz a Aline Oliveira (Mimim do racismo) “mente fechada”. 

Ou seja, não interessa se você se sentiu incomodada, ou incomodado por algum post, comentário, fotografia, ou charge racista com que você infortunadamente tropeçou nalgum dos grupos de que você participa, terás que manter a boca fechada e levar sua indignação para outro lugar, porque se tiveres a ousadia de reivindicar, questionar, ou apenas dar uma opinião contrária à da maioria estarás buscando ofensas para décadas de terapia. Muitas vezes a acusação mais reducionista é: “Para você agora é tudo racismo!”

Lembro de uma entrevista em que foi perguntado ao artista Renato Aragão, se eram racistas as piadas que faziam com o Mussum, ao que ele respondeu:“Ninguém entendia isso como racismo, ninguém. Eram brincadeiras, eram caricaturas.”

Diante destas palavras fico pensando como para muitas pessoas as palavras do artista não causam o mínimo incômodo e nem se perguntam se será possível que as piadas dos trapalhões se tenham tornado racistas apenas agora no século XXI? Acho que quem acredita nisso deve ter muita preguiça de exercitar os neurônios, pois nem imaginam que o que pode ter acontecido (além de várias outras hipóteses, é claro) é que a sociedade começou a organizar-se politicamente tornando os movimentos sociais que discutem questões raciais, direitos das mulheres, direitos das pessoas LGBT, etc. cada vez mais fortes de tal sorte que vozes ontem silenciadas, hoje podem ser ouvidas e exigem ser igualmente respeitadas.

Então, para aqueles que talvez pensem nessas reivindicações reduzindo-as apenas a uma patrulha, uma onda de vitimismo, um excesso de zelo, ou mimimi, seria bom saber que o mundo está mais atento aos fascismos nossos de cada dia e por isso precisamos aprender ou nos forçar a respeitar principalmente o diferente. Pois não há nobreza em tolerar o igual, já que este se parece com a gente!

Considerando que muitas vezes quem se sente incomodado com o suposto mimimi são justamente as pessoas que se beneficiam de certos privilégios, que são o resultado da exclusão dos negros, não posso deixar de pensar que essa falta de sensibilidade representa de um lado a total ignorância que algumas pessoas brancas demonstram em relação ao sofrimento de não-brancos e nesse caso específico de negros, quanto ao fato de terem que lidar quotidianamente com várias situações que os levam a sentirem-se inferiorizados, desde a uma tentativa de encontrar emprego, uma abordagem policial e até pelo humor. Chamar de vitimismo ou mimimi às reivindicações da população negra demonstra não apenas uma grande falta de respeito, mas mais grave ainda, um desconhecimento crônico e lamentável da história de escravatura sobre a qual o Brasil foi construído e de seus perversos contornos.

A obra “A Abolição” de Emília Viotti da Costa* é rica em detalhes sobre essa perversão, que deixou como herança por um lado uma população negra, que nem pode fazer qualquer apontamento que é tomado por vitimismo (e essa é apenas uma das mais insignificantes das consequências) e por outro lado, um grupo que ainda não aprendeu a diferença entre privilégio e direito.

Dentre as várias lições históricas que Emília nos oferece, uma que me pareceu interessante e atual (considerando as revoluções sociais contemporâneas, as conquistas da esquerda e os obstáculos encontrados devido a onda de conservadorismo) tem a ver com a mudança progressiva das convicções das pessoas quanto a questão da escravatura, ou seja, a escravidão era praticada a três séculos e ninguém questionava a ilegitimidade da mesma. 

Para a sociedade brasileira da época era normal e até desejável não apenas ter escravos, mas comercializá-los como simples objetos, tratá-los a seu bel prazer e/ou passá-los de pais para filhos como parte da herança familiar. Deste modo, se parodiando Renato Aragão, chegaríamos facilmente à irônica conclusão de que: estava tudo bem, era normal e ninguém via problema nenhum, ninguém via maldade na escravatura! Quer dizer os brasileiros de hoje (Séc. XIX em diante) são uns “”, porque não são mais capazes de ver os benefícios da escravidão para o país?

Bom, é preciso lembrar que para estar tudo bem foi necessário relativizar, os direitos humanos e depois a própria constituição brasileira, daí ficava fácil dizer que a escravatura não era um problema, porque ninguém achava execrável que pessoas (negras) fossem separadas das suas famílias e vendidas, marcadas como gado, porque ninguém via como violação dos direitos humanos, afinal eles nem eram humanos! O direito de se indignar da sua condição era-lhes recusado, porém, estava tudo bem, era normal e ninguém via problema nenhum, ninguém via maldade na escravatura. Isso mesmo!

Exatamente por esta razão, enquanto algumas pessoas (emancipacionistas e abolicionistas) tinham começado a levantar-se contra a escravidão, existiam outras que pensavam sobre a abolição da escravatura, o equivalente ao que alguns brancos hoje pensam sobre o racismo, cotas e outras questões raciais:


Que não havia necessidade de criar tanto caso com a questão do negro, ou pior, que era muita ousadia dos escravos aspirarem à abolição!
Ou como hoje, que é muita ousadia dos negros e pobres, viajarem de avião, estudarem em universidades públicas, organizarem manifestações, exigirem cotas raciais, etc.

Em suma, é muito mimimi desse povo!

Pois bem na época da escravatura também se consideravam muito mimimi as propostas e reivindicações com vista a abolição da escravatura (alguém mais vê alguma semelhança?) e Viotti nos serve com alguns bons e velhos exemplos históricos:

-O Deputado Silva Guimarães propôs uma lei que garantisse a liberdade dos nascituros, mas a mesma não teve sucesso;

-O projeto de lei de Silveira da Mota (proibindo venda sob pregão, leilões, e separação de famílias) demorou nove anos para ser aprovado na câmara;

-A Lei do ventre livre, só em teoria garantia a libertação dos escravos, pois a mesma lei permitia que essas crianças permanecessem ao serviço dos senhores escravistas até à idade de 21 anos prestando “serviços gratuitos” em retribuição pelo seu sustento;

-A lei dos sexagenários (emancipação de escravos com 60 anos), foi igualmente recebida de mau grado, tornando incompreensível e revoltante a ganância de quem enriquecia com o trabalho escravo, pois mesmo depois de ter explorado o trabalho de outros por 60 anos de suas vidas, ainda se recusavam a dar àquelas pessoas a mínima possibilidade de liberdade e isso numa altura em que já estava inequivocamente claro até para os espíritos menos esclarecidos, que a abolição era a coisa certa a fazer.

Com o tempo a própria história encarregou-se de mostrar a necessidade de mudança, deste modo, se a simples ideia da abolição era inaceitável em 1871, dezessete anos depois a escravatura seria abolida sem dificuldade. Mas de novo, isso não significou necessariamente ampla liberdade e acesso irrestrito aos mesmos direitos e espaços (A abolição da escravatura: a liberdade que não veio). Ou seja, ainda precisou-se (e continua se precisando!) de muito “mimimi” para conseguir essa famigerada “ampla liberdade”.

Por tudo isso, minha esperança e desejo é que as questões do negro e do afro-brasileiro sejam um dia vistas como muito mais do que simples vitimismo, ou uma patrulha social e que as pessoas despertem para o fato, de que se hoje várias referências depreciativas do negro são repudiadas, não é porque antes elas fossem menos ofensivas, mas porque estamos todos (não apenas negras e negros) cada vez mais conscientizados dos danos que elas causam. Se há tanto mimimi, é porque continua sendo produzido sofrimento e felizmente na atualidade as pessoas já não têm medo de mostrar publicamente sua indignação.

*Felizardo T. B. Costa é escritor e aluno da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp e colaborou para Pragmatismo Político

Referência

Costa, E. V. A abolição. São Paulo. Global editora. 1986.

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