''NESSUN DORMA'' ( NINGUÉM DURMA) E O MEDO DEMOCRÁTICO. CAD PAÍS TEM O IMPÉRIO DA LEI QUE MERECE

19ª etapa da operação Lava Jato, desencadeada em 21/9/15, foi batizada sugestivamente como "Nessun dorma" (que ninguém durma). 

O professor e médico Paulo Saldiva (comentarista do Jornal da Cultura), com o brilhantismo de sempre, afirmou (jocosamente) que poderíamos dividir a evolução da humanidade em quatro eras: paleolítica, mesolítica, neolítica e “ansiolítica”. Os envolvidos na Operação Lava Jato, o presidente da CBF Del Neto e tantas outras pessoas também são protagonistas dessa era ansiolítica, visto que nunca sabem se (nem quando) aparecerá um mandado de prisão na sua vida.

Um político inglês disse, certa vez, que liberdade é saber que quando a campainha da sua casa toca às seis horas da manhã é o leiteiro chegando, não a polícia, com um mandado de prisão nas mãos. É precisamente essa certeza de que é o leiteiro que o acorda às seis da manhã que os criminosos da Operação Lava Jato não possuem. Claro que se pode sempre questionar a legalidade de tais mandados de prisão, que nem sempre seguem o estabelecido pelo Estado de Direito. Mas fora disso, ter medo da força da lei justa é algo muito positivo para a coesão social (assim E. Giannetti,Vícios privados, benefícios públicos?, p. 60 e ss.).

É muito relevante tanto para a sobrevivência comunitária como para o desempenho econômico das pessoas, das empresas e das nações o chamado “medo democrático”, que é o medo da Justiça justa, das sanções legais justas (que sempre deveriam ser, ademais, certas). Como enfatizou Jorge Reverte (El País), “existe um medo democrático muito são que nos evita as catástrofes”. Se o medo democrático fosse uma realidade no Brasil certamente não estaríamos vivendo as agudas crises que se somaram (diacrônica e sincronicamente).

Em lugar do “medo democrático” o que vemos hoje na percepção do brasileiro é a desconfiança nas instituições públicas do país vinculadas com o cumprimento da lei: pesquisa da FGV (de novembro/14) constatou que 81% dos brasileiros concordam com a afirmação de que é "fácil" desobedecer às leis. No seu lugar sempre se pode “dar um jeitinho”. Para 32% da população o Judiciário não é confiável. Já a confiança na polícia fica um ponto porcentual acima, com 33%. É nítida a ruptura entre os cidadãos e as instituições públicas: 57% da população dizem acreditar que "há poucos motivos para seguir as leis do Brasil".

Nesse contexto de distanciamento ostensivo entre o ser e o dever ser não é infrequente a atitude de zombar dos encarregados de aplicar a lei (polícia, fiscais tributários, guarda de trânsito, oficial de justiça etc.). Aliás (conforme a pesquisa da FGV), quanto maior a renda, mais descrença existe: 69% dos entrevistados que ganham até um salário mínimo concordaram que o "jeitinho" é a regra, percentual que cresce para 86% na população que ganha mais de oito salários mínimos (esse último é o grupo do “Você sabe com quem está falando”, tal como descrito por DaMatta).

Cada país tem o império da lei (e, portanto, a organização social) que merece. Os políticos não passam de espelho (piorado) da população. “O que nos leva a acatar uma norma de conduta? Qual o motivo individual de fazer coisas como, por exemplo, cumprir as leis, pagar impostos, dizer a verdade, não atirar lixo na rua, ser pontual, entrar em fila, respeitar o farol, não colar [nas provas] etc., e isso independentemente da relação que fazer tais coisas possa guardar com o nosso autointeresse?

Para E. Aronson (citado por E. Giannetti, Vícios privados, benefícios públicos?, p. 94) o cumprimento das normas se deve a três fatores: internalização, identificação e submissão. Internalização é a decisão de acatar a norma com base numa reflexão ética (se todos fôssemos éticos não necessitaríamos, normalmente, de outras normas que não fossem as morais); identificação é a adesão a normas motivada pelo exemplo e pelo desejo de conquistar ou manter a boa opinião dos demais; submissãoé a adesão à norma por força da ameaça de sanção externa ao infrator.

Onde as normas praticamente não estão internalizadas, onde não existem muitos exemplos a serem seguidos e onde 81% acham que é fácil burlar as leis parece muito evidente a predominância do caos (não da coesão) social. Não é por acaso que o Brasil está vivendo cinco crises concomitantes: política, econômica, social, jurídica e ética. Elas não estão por aí se cruzando conforme os horóscopos.



Luiz Flávio Gomes

Professor

Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas] JUSBRASIL

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