AS ATAS SECRETAS DO COMITÊ DE CRISE DA COVID-19 NÃO ANALISADAS PELA CPI

Documento inédito de 806 páginas detalha 233 reuniões do governo Jair Bolsonaro no combate à pandemia entre 2020 e 2021

Por Rubens Valente, Alice Maciel, Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Matheus Santino, Bianca Muniz, Thiago Domenici

Mantidas em sigilo ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro, as atas de 233 reuniões realizadas entre diversos ministérios e órgãos no coração do Palácio do Planalto, sob a coordenação da Casa Civil então chefiada pelo general da reserva Braga Netto, revelam detalhes sobre o combate à pandemia da Covid-19 adotado pelo governo federal de 2020 a 2021. Os documentos, que nunca foram analisados pela CPI da Covid de 2021, mostram, por exemplo, como o Ministério da Defesa, o Itamaraty e o Ministério da Saúde se empenharam na produção de cloroquina, um remédio ineficaz para o tratamento da Covid-19 que era propagandeado por Bolsonaro como solução para a crise sanitária.

As atas somam 806 páginas produzidas pela Casa Civil. Elas são a memória escrita das reuniões realizadas pelo CCOP (Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19) de março de 2020 a setembro de 2021 que envolveram representantes de 26 órgãos da Esplanada, incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O CCOP foi criado a partir de um decreto de Bolsonaro logo no início da pandemia, em 24 de março de 2020. Suas reuniões, que ocorreram principalmente na Sala 97 do Palácio do Planalto, eram secretas e o resultado jamais se tornou público – até agora.
                                                                                                                                  Reprodução
Atas secretas de 233 reuniões detalham ações do governo Jair Bolsonaro no combate à pandemia entre 2020 e 2021

A reportagem buscava acesso às atas desde 2020 por meio de pedidos na LAI (Lei de Acesso à Informação), mas foi barrada várias vezes pelas negativas do governo Bolsonaro, incluindo uma decisão do próprio Braga Netto. O governo alegou na época que as atas tinham “natureza preparatória” e que os temas tratados pelo CCOP “possuem caráter muitas vezes continuados, que perduram, estratégicos e de sensibilidade, ainda passíveis de decisões definitivas”. Ao criar os documentos, a Casa Civil não adotou um grau de sigilo definido pela LAI (reservado, secreto ou ultrassecreto). Na prática, a recusa do governo institui um sigilo eterno, sem prazo para acabar.

No início deste mês, graças ao apoio de milhares de leitores, nosso projeto para abrir e investigar a “Caixa Preta” do governo Bolsonaro foi viabilizado, e a Agência Pública enfim conseguiu acesso à documentação. O novo pedido foi agora acolhido pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Além da participação do Ministério da Defesa na produção da cloroquina, os papéis revelam diversos aspectos desconhecidos e bastidores sobre o combate à pandemia e que serão tratados numa série de reportagens que a Pública publicará a partir de hoje.
Para CPI da Covid, o CCOP aceitou “medidas inadequadas e tardias”

A CPI da Covid, instalada no Senado Federal em 2021, concluiu que a Casa Civil e o seu Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP) aceitaram “medidas inadequadas e tardias” do governo Bolsonaro e sugeriu o indiciamento do então ministro, Braga Netto, por suposto “crime de epidemia com resultado morte”.

Apesar da sugestão de indiciamento, Braga Netto foi poupado de uma investigação mais aprofundada e acabou citado apenas oito vezes no corpo do relatório final. Ele sequer foi chamado a depor na Comissão.

                                         
                     Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações                                                               
Casa Civil, comandada então pelo general da reserva Braga Netto, aceitou “medidas inadequadas e tardias” contra a Covid-19

Segundo a CPI, a “centralidade” do CCOP “como instância burocrática de gestão da pandemia é evidente, sobretudo na construção da estratégia governamental, compra e distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada, aquisição de vacinas e difusão da tese da imunidade de rebanho”.

“Assim como inequívoco o comando exercido pela Casa Civil nas decisões sobre a pandemia. Cabia a Braga Netto e a Heitor Freire, portanto, assessorar o Presidente da República sobre questões relativas à pandemia. Eles eram as pessoas encarregadas de articular as ações do governo federal, o que não ocorreu. O que vimos foram ações erráticas tomadas, por exemplo, pelo Ministério da Saúde, pelo Ministério das Relações Exteriores e pela Secom, no que diz respeito à divulgação de dados sobre a epidemia, a implementação de medidas não farmacológicas (distanciamento e isolamento social, uso de máscaras, etc.), campanhas educativas e, sobretudo, a aquisição de vacinas. De igual modo, assistimos a uma intervenção tardia e ineficiente quando se instalou o caos no sistema de saúde do estado do Amazonas, numa demonstração de total falta de coordenação e articulação do governo com os demais entes federativos”.

Segundo a CPI, “a conclusão que se chega é que, além de não existir efetivo comando no Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19, houve aceitação das medidas inadequadas e tardias tomadas pelo chefe do Poder Executivo Federal e pelo Ministério da Saúde. As ações e inações do Ministro Braga Netto e do ex-coordenador Heitor Freire de Abreu são, portanto, suficientes para configurar a possível prática do crime de epidemia, considerando seu dever de agir e a relevância das suas omissões ao quedarem-se inertes e, assim, contribuírem para o agravamento da pandemia”.
                                                                                                                                       Reprodução
Trecho do relatório final da CPI da Covid afirma que as ações e inações de Braga Netto contribuíram para o agravamento da pandemia

No relatório final, a CPI transcreveu uma resposta que a Casa Civil encaminhou ao TCU (Tribunal de Contas da União) sobre o CCOP e o seu papel na pandemia. De acordo com a comissão, “a Casa Civil informou que decisões que envolvessem a necessidade de apreciação científica da área médica seriam de competência do Ministério da Saúde, sendo que, quando necessário, técnicos e especialistas do próprio Ministério seriam instados a emitir opiniões e elaborar notas técnicas. Quanto ao CCOP, asseverou que a participação de tais representantes restaria inócua, uma vez que estes não teriam competência legal para a execução das ações (Acórdão 4075/2020, TC 016.708/2020-2)”.

O primeiro texto da série revela, por exemplo, como o Ministério da Defesa se empenhou na produção de cloroquina, chegando a apoiar a indústria que pretendia tornar a Bahia um “case” no uso da medicação.




GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

Postar um comentário

0 Comentários