Imagine-se que as retroescavadoras arrancavam de Viana do Castelo e
só paravam em Miranda do Douro, cortando a terra ao meio para que as
águas do Atlântico chegassem à fronteira com Espanha e com elas navios
de grande calado. É isto mesmo que a Nicarágua se prepara para fazer,
cumprindo assim um velho sonho de rivalizar com o Panamá no mapa das
rotas mundiais de comércio.
Desde a Guerra Civil de 1890 que não existem tantas
atenções a pairar sobre a Nicarágua. Desta vez, ao contrário de rebeldes
sandinistas ou indígenas, a maior república da América Central é
ocupada por um batalhão de advogados, consultores de negócios
americanos, engenheiros australianos, auditores ambientais britânicos e
executivos chineses.
Esta agitação é encabeçada
por Wang Jin, um empresário chinês que pretende cavar uma enorme via
interoceânica entre o Atlântico e o Pacífico através da Nicarágua, que
virá competir directamente com o canal do Panamá. A construção de cerca
de 286 quilómetros - uma distância superior àquela que vai de Viana do
Castelo a Miranda do Douro - está orçamentada em cerca de 40 mil milhões
de dólares (cerca de 30 mil milhões de euros).
Depois de o
projecto de lei para a construção do canal ter sido aprovado no
parlamento nicaraguano, a 13 de Junho de 2013, com 61 votos a favor e 25
contra, o ambiente é de comemoração por parte do Governo - "Este é um
dos dias mais importantes do desenvolvimento histórico e económico do
país", afirmaram os responsáveis - que prevê um crescimento do PIB de
10% a 15% num curto prazo e a criação de milhões de postos de trabalho
nos próximos anos.
Com esta aprovação, a frente Sandinista
liderada pelo presidente Daniel Ortega concedeu ao grupo chinês HNKD uma
concessão de 50 anos (renovável por mais 50) a troco de uma taxa de 10
milhões de dólares por ano (cerca de sete milhões de euros). No décimo
primeiro ano de operacionalização do canal, a Nicarágua terá 10% da
empresa, valor que será de 100% no espaço de um século, segundo o The Wall Street Journal.
Para
dar início a esta obra multimilionária, o empresário chinês registou em
Hong Kong uma unidade empresarial criada exclusivamente para o
desenvolvimento do canal – grupo HK Nicaragua Canal Development
Investment Co. Limited (HKND Group).
Este projecto não revela
ainda uma rota concreta para o traçado do canal e são poucos os detalhes
do financiamento ou da viabilidade da obra.Para agilizar os trabalhos, o
grupo HKND contratou as consultoras australiana MEC Mining (Mining
Engineering Consultants) e a belga SBE (Studiebureau voor Bouwkunde en
Expertises) especializadas em obras hidráulicas, engenharia civil e
geotecnia. A americana McKinsey também leva a cabo análises de mercado e
de crescimento de comércio global que fundamentem economicamente o
canal.
Ideia da época colonial
Esta ideia está
longe de ser recente, tem as suas raízes na época colonial quando uma
importante rota comercial atravessava a Nicarágua entre as costas leste e
oeste da América Central. No século XIX, quando ainda não funcionava o
canal interoceânico do Panamá, as embarcações provenientes do oceano
Atlântico entravam no rio San Juan (rio que nasce no Lago da Nicarágua e
desemboca no mar do Caribe) e navegavam até ao lago da Nicarágua.
Percorrido o maior lago da América Central, as pessoas, bens e produtos
faziam uma travessia em carruagens perto da cidade de Rivas (entre o rio
da Nicarágua e o Pacífico) até chegarem ao oceano paralelo.
O
actual projecto de construção do canal, três vezes maior que o do
Panamá, é um sonho que durante épocas decepcionou todos os que nele
acreditaram. Mas Wang Jin mostra-se muito confiante e atento a quaisquer
obstáculos que a sua obra possa vir a enfrentar. “Nós não queremos que
isto se torne numa piada internacional e não queremos que se transforme
num exemplo de investimentos chineses falhados”, declarou numa
conferência em Pequim.
A um dos maiores trabalhos de construção do
mundo estão associados um oleoduto, dois portos de águas profundas, uma
ferrovia transcontinental e dois aeroportos. O conjunto destas obras
foi avaliado em cerca de quatro vezes o valor do PIB da Nicarágua (10
mil milhões de dólares, cerca de sete mil milhões de euros).
“O canal da Nicarágua – Uma oportunidade de crescimento e prosperidade” é o slogan da empresa concessionária e enquadra as envolventes do projecto.
Segundo
análises económicas do grupo HKND a taxa de crescimento média actual do
comércio vai triplicar até 2020. A consequência directa deste aumento
das trocas mundiais será a criação de embarcações de maior dimensão que
irão ultrapassar a capacidade dos canais já existentes.
Nova geração de transportes
O
alargamento do canal do Panamá, actualmente em curso, significa que as
embarcações serão capazes de aumentar a sua carga de 5000 contentores
para 13.000. De acordo com o especialista em transportes, Rodney
McFadden, o canal da Nicarágua pode suportar mais do que o dobro dos
contentores conduzidos através da América Central, ou seja, 30.000
contentores por embarcação. Sublinha que embarcações maiores são mais
vantajosas porque transportam mais carga pelo mesmo preço, aumentando
assim o fluxo de comércio e beneficiando o ambiente, segundo a Voice of America, o serviço oficial de radiodifusão do governo dos Estados Unidos.
 |
As organizações ambientalistas qualificam a construção do canal como “a maior ameaça ao ambiente na história do país”
DR
|
Assim,
este canal na Nicarágua pode acomodar uma nova geração de transporte
marítimo de minérios, gás e petróleo que de outra forma faria uma rota
mais longa pela ponta sul da América Latina.
A obra, com início
agendado para o final de 2014, promete duplicar o PIB da Nicarágua e
triplicar o emprego já em 2018, segundo Paul Oquist, secretário de
políticas públicas da Presidência da República.
A HKND aponta para
um prazo de 10 anos até à conclusão da obra e acredita que em 2030 –
pouco mais de 16 anos a partir de agora – o volume de comércio terá
crescido 240%. Acrescenta também que o valor total de mercadorias que
transitam os canais da Nicarágua e do Panamá vão exceder os 1,4 biliões
(milhões de milhões) de dólares (cerca de 1,03 biliões de euros),
tornando esta uma das mais importantes rotas comerciais do mundo.
A
empresa líder do consórcio afirma que a Nicarágua terá benefícios
significativos através do aumento do investimento estrangeiro, da
construção de infra-estruturas vitais – estradas, aeroportos, portos –
do estabelecimento de zonas de comércio livres e do desenvolvimento de
zonas de turismo ecológico que vão estimular o crescimento e o
investimento, bem como potenciar a criação de milhares de postos de
trabalho em diversos sectores de actividade.
O empresário asiático
de 40 anos será responsável pelo financiamento do projecto e, numa
entrevista à Reuters, disse que a HKND vai liderar um consórcio de
parceiros que irão operar de forma “justa, imparcial e aberta” e que
pode vir a incluir empresas internacionais. Embora as negociações
estejam a decorrer lentamente, a obra será financiada por grandes bancos
chineses e outros internacionais ainda desconhecidos.
Um parceiro
provável é a empresa China Railway Construction, uma das maiores
corporações estatais de infra-estruturas do país, e que recentemente
assinou um acordo de cooperação com o grupo Xinwei Telecom Enterprise,
também do empresário Wang Jin.
Maior ameaça ambiental no país
Mas
acresce outra importante polémica o impacto ambiental de tão monumental
obra. A consultora britânica Environmental Resources Management (ERM)
foi contratada pela construtora para averiguar as consequências de
escavar um canal profundo através do Lago da Nicarágua, o maior lago de
água doce da América Latina, e de talhar terras ancestrais indígenas até
chegar ao mar do Caribe. E tentar compensar os danos.
“Assumo
toda a responsabilidade por qualquer dano ambiental. Disse aos meus
funcionários que se se cometer um erro nesta frente vamos ser desonrados
nos livros de história da Nicarágua”, declarou Wang Jin, segundo o The Guardian.
Mesmo
com o compromisso do empresário, as organizações ambientalistas
qualificam a construção do canal como “a maior ameaça ao ambiente na
história do país” e “o maior risco para a população que fica
desprotegida e incapaz de satisfazer as suas necessidades básicas de
água e alimentação”, segundo a KienyKe, uma revista colombiana independente. “É como se houvesse um slogan
codificado: ‘O canal a qualquer custo’” disse Manuel Ortega Hegg, vice
presidente da Academia de Ciência da Nicarágua, conforme o The Economist.
Víctor Campos, porta-voz do Centro Humboldt de Managua, revelou à KienyKe
que fizeram uma denúncia formal e internacional advertindo para as
consequências desta construção para o Lago da Nicarágua.
Segundo
explicou, as rotas que atravessarão a reserva de oito mil quilómetros
quadrados põem em risco o abastecimento de água potável para milhões de
cidadãos. “Nas encostas e proximidades deste lago vive a maioria da
população; limitar o acesso à água potável afectaria todos os
territórios próximos” notou.
Além disso, na vasta reserva de água
doce habitam mais de 120 espécies ameaçadas - aves, mamíferos, répteis,
peixes, anfíbios, molúsculos e crustáceos. Os especialistas citam o
exemplo de espécies nativas como o crocodilo Acutus, que ficará
sem a sua zona de reprodução, ou do tubarão de água doce.
O porta-voz
do centro diz que o canal será uma barreira ao livre trânsito da fauna e
da troca genética entre espécies, provocando um desequilíbrio na
biodiversidade da América Central.
O projecto pode entrar também
em terrenos legais instáveis. Gabriel Alvarez, professor de Direito na
Universidade Nacional Autónoma da Nicarágua, disse ao The Economist
que existem 32 acusações de violação da constituição, um número sem
precedente na Nicarágua. O professor destaca a lei que dá à empresa
isenção de impostos e direitos sem restrições a uma vasta extensão de
terra, regulamento que viola a soberania do país.
Alguns analistas
admitem que um canal deste tipo poderia favorecer a China da mesma
forma que o Canal do Panamá favoreceu os Estados Unidos no início do
século XX, num momento em que a potência asiática tenta consolidar uma
agressiva expansão comercial e política ao nível global.
Um
panorama económico possível é que o canal possa aumentar a
competitividade dos produtos chineses na América devido à diminuição dos
custos de transporte. Isso é especialmente atractivo dada a dimensão do
mercado consumidor dos EUA.
“Para a China, é um golo geopolítico
nos Estados Unidos”, disse à BBC Mundo Heinz Dietrich, investigador da
Universidade Autónoma Metropolitana (UAM) do México. “[A China] teria
uma acesso estratégico muito melhor à América do Norte, algo que não tem
neste momento.”
Diana Inácio Mendes
PÚBLICO - PORTUGAL
GAZETA SANTA CÂNDIDA,
JORNAL QUE TEM O QUE FALAR
0 Comentários