Não é de hoje que Veja é criticada por utilizar artifícios estranhos
aos mais elementares princípios éticos do jornalismo. Entre eles, a
descontextualização, ou mesmo a pura e simples invenção de declarações.
Uma revista publica um pingue-pongue – entrevista em formato de
perguntas e respostas – com um jornalista que imediatamente denuncia em
seu blog o “engodo”, porque não teria dado entrevista alguma; a revista
responde reafirmando a autenticidade do texto e tudo fica por isso
mesmo, a palavra de um contra a da outra.
Aconteceu recentemente. A edição 2284 da Veja Rio, que começou a
circular no fim de agosto, trazia, na coluna “Beira Mar”, uma suposta
entrevista com o colunista esportivo Renato Maurício Prado, do Globo,
sobre o fim de seu contrato com a SporTV, depois de uma discussão ao
vivo com o apresentador Galvão Bueno, durante um programa de debates nos
últimos Jogos Olímpicos.
Dois dias depois, na nota “Pingo nos is”, ao pé de seu blog,
reproduzida no dia seguinte em sua coluna no caderno de Esportes do
jornal impresso, Renato afirmava que não dera entrevista: teria apenas
atendido ao telefonema da repórter e explicado que não queria falar,
“até por entender que nós, jornalistas, não somos notícia”.
Ressaltava inclusive um erro na menção à sua participação num
programa de rádio, já extinto havia mais de dois anos, e lamentava a
utilização de uma foto sua, feita para sua coluna no Globo, pois, para o
leitor, ficava a impressão de que ele teria posado para Veja.
Em nota oficial, publicada na sequência da resposta de Renato Maurício prado, a revista rejeitava o desmentido.
O que se diz no contestado pingue-pongue não tem qualquer relevância
para além do previsível noticiário sobre “celebridades e personalidades
do Rio”, que é o tema dessa seção da revista. A questão do método, sim, é que é de extrema relevância, independentemente do assunto, da importância das fontes ou da parcela do público a que se destina esse tipo de informação. Ou fraude.
A farsa da reportagem
Não é de hoje que Veja é criticada por utilizar artifícios estranhos
aos mais elementares princípios éticos do jornalismo. Entre eles, a
descontextualização, ou mesmo a pura e simples invenção de declarações.
Recordo aqui, apenas para ilustrar, um caso de grande repercussão
ocorrido há pouco mais de dois anos: o texto intitulado “A farra da
antropologia oportunista“, publicado em maio de 2010, que acusava
pesquisadores de forjar a existência de comunidades indígenas ou
quilombolas em proveito próprio – das ONGs das quais participavam – e em
detrimento das perspectivas de desenvolvimento do país.
Para tanto, utilizava supostas afirmações de dois antropólogos,
Mércio Pereira Gomes e Eduardo Viveiros de Castro, que argumentariam no
sentido pretendido pela revista.
A farsa da reportagem foi denunciada em pelo menos três artigos neste
Observatório e na resposta do professor Gomes (“Resposta a uma matéria
falsa“), que recusava à Veja “o falso direito jornalístico” de
atribuir-lhe “uma frase impronunciada e um sentido desvirtuante” daquilo
que pensava sobre a questão indígena brasileira.
O protesto de Viveiros de Castro também circulou amplamente pela
internet e provocou uma troca de mensagens entre ele a revista, na qual
ficava evidente a inexistência de entrevista e a deturpação dos
argumentos do pesquisador, retirados de um artigo seu.
O mais curioso é que Veja concluía sua resposta dizendo que o
antropólogo a havia autorizado a utilizar o tal artigo “da forma que bem
entendesse”. O que, a rigor, jamais poderia ocorrer, porque
evidentemente nenhum texto pode ser utilizado de qualquer jeito: precisa
ser citado de acordo com a sua própria coerência interna, conforme o
contexto em que foi escrito.
REVISTA VEJA TEM LONGA TRADIÇÃO DAS '' ENTREVISTAS " INVENTADAS
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Revista Veja tem longa tradição das “entrevistas” inventadas. Publicação
da Abril cai em descrédito ano após ano. Foto: reprodução
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O elogio da fraude
Criada em 1968 por Mino Carta, Veja passou por uma série de mudanças
ao longo dessas mais de quatro décadas, e só um estudo detalhado poderia
apontar o que a levou a se distanciar progressivamente da prática
rigorosa do jornalismo para enveredar por uma política editorial que
pretende amoldar a realidade às suas pautas, utilizando quaisquer
recursos para a obtenção dos resultados previamente definidos. O recente
episódio que envolveu o colunista esportivo seria, portanto, apenas uma
derivação social e politicamente irrelevante de um processo incorporado
há muito tempo.
Entretanto, nesse processo há um aspecto essencial e aparentemente
inocente que deveria chamar a atenção, sobretudo de jovens aspirantes a
jornalistas, especialmente agora que a discussão a respeito da adequada
formação retorna, com o debate sobre a exigência do diploma
universitário: é que as regras elementares do método jornalístico não
são tão elementares assim. Pois que mal faz inventar entrevistas, desde
que elas sejam simpáticas às fontes?
Em Notícias do Planalto, lançado em 1999 e prestes a ser reeditado, Mario Sergio Conti relata a esperteza de Elio Gaspari, então em início de carreira:
“[Gaspari] estava numa agência de notícias no Galeão. O aeroporto
era o ponto de passagem dos poderosos da República. Os políticos, ainda
em trânsito da antiga para a nova capital, embarcavam nos voos
matutinos para Brasília. No Galeão desembarcavam as celebridades
estrangeiras que visitavam o Rio. Como se podia entrar na área da
alfândega, os jornalistas circulavam e faziam entrevistas. Os repórteres
da agência tinham de falar com os passageiros famosos, redigir as
matérias na sala de Imprensa, tirar cópias num estêncil a álcool e
mandá-las para os jornais. Gaspari logo constatou que o tempo médio de
embarque e desembarque, vinte minutos, era escasso. Enquanto
entrevistava um deputado, perdia outros três que entravam no avião para
Brasília. Passou a acordar de madrugada para ler os jornais e, com base
neles, escrever pequenas entrevistas de políticos comentando os assuntos
do dia. Se concordavam com as respostas, passavam a ser os
entrevistados de fato e de direito. Assim, podia mandar aos jornais
três, quatro entrevistas, em vez de uma. Os entrevistados agradeciam
porque, além de estarem nos jornais, às vezes pareciam mais inteligentes
ou engraçados do que realmente eram.”
Esses políticos jamais poderiam sonhar que algum dia lhes cairia no
colo um assessor tão bom, e ainda por cima gratuito. Conti prossegue,
muito divertido:
“Em Veja, o método foi refinado e usado anos a fio. Gaspari
inventava um raciocínio para avivar uma matéria, geralmente de
madrugada, no calor do fechamento, e mandava um repórter achar alguém
famoso que quisesse assumir a autoria. A frase “O povo gosta de luxo,
quem gosta de miséria é intelectual” nasceu assim, proposta por Gaspari
ao carnavalesco Joãozinho Trinta. O truque era puro Elio Gaspari. Tinha
algo de molecagem, mas ficava nos limites das normas jornalísticas, na
medida em que ninguém era forçado a encampar uma declaração. O seu fim
último era levar um fato novo ao leitor (…)”.
Então ficamos assim: inventar declarações e atribuí-las a terceiros
faz parte das normas jornalísticas, desde que sejam favoráveis a essas
fontes. Nada impede, tampouco, que se recorte um artigo e nele se
insiram perguntas, para dar a impressão de um pingue-pongue. Terão
razão, afinal, certos teóricos que dizem que jornalismo é ficção?
Essas coisas as escolas – pelo menos, as escolas de qualidade – não
ensinam. Pelo contrário, refutam e denunciam. No entanto, renomados
jornalistas – nos quais, naturalmente, muitos jovens se miram – praticam
e enaltecem o que deveriam combater. E a fraude só causa revolta quando
contraria os envolvidos.
Mas nem por isso deixa de ser o que é.
Sylvia Debossan Moretzsohn, Observatório da Imprensa
GAZETA SANTA CÂNDIDA,JORNAL QUE TEM O QUE FALAR
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