A DELICADA RELAÇÃO ENTRE OS MÉDICOS E A MORTE

O médico lida das mais diversas formas com a morte. Do saudável amadurecimento e crescimento existencial ao chamado 'humor negro'


Alexandre A. Loch, Huffpost

É como todos falam, de uma coisa temos certeza: de nossa morte. Ela é inexorável. Por mais que ao longo dos tempos tenhamos tentado enganá-la, mais cedo ou mais tarde ela sempre vem, basta estarmos vivos.

Antibióticos, antimicóticos, antivirais, cirurgias, quimioterapia, radioterapia, próteses, vasodilatadores, antiarrítmicos, anti-hipertensivos, hipoglicemiantes, tudo para proteger-se dela. Mas não adianta, ela sempre estará à nossa espera. Por mais que o homem sonhe com a eternidade, a natureza se incumbe de garantir que tal ideia apenas seja um sonho.

Mas não dá para viver direito com essa perspectiva onisciente, sempre presente. Tocamos nossa vida então na ilusão da eternidade. Nossa obra, nossa história, o nosso ser hão de viver para além de nós mesmos. Na memória de quem ficou. No papel ou no pixel da foto. Na prateleira, no caderno, no armário.

Aquilo que fizemos, ou que de nós foi feito, ou que conosco se associa, uma blusa, uma camisa, um jeito, permanecem. Pois se absolutamente tudo acabar quando fechar os olhos para sempre, de que adiantará viver? Algo de nós tem de ficar. A existência corporal pára, mas a mnêmica continua, na cabeça dos outros.

E talvez seja esta a maior ilusão de nossa vida, e a que mais dá sentido a ela: a de que perseveraremos mesmo depois que nosso corpo parar. Pois para muitos, este é o real sentido de se estar vivo: o de fazer histórias para a posterioridade. O de vivermos um pouquinho depois de nossa morte, ainda que não seja no nosso próprio corpo. É o que muitas religiões oferecem como alento.

Mas algumas situações fazem que nos lembremos de que a eternidade é apenas um sonho. Em geral, estas notícias são trazidas pelos médicos: a doença grave, incurável, uma contagem regressiva dentro de você.

Todos nascemos já com essa contagem. O relógio começa a regredir no momento em que saímos do ventre da mãe. Mas o grande segredo da coisa é que não sabemos a quantas anda essa contagem. E também não queremos saber. Este segredo é o que nos permite sonhar com a eternidade.

Mas quando um outro aparece e nos comunica de que não passaremos de tantos meses, a sentença nos joga na dura realidade óbvia de que nosso corpo uma hora vai parar. Ou quando ela passa ao nosso lado, levando algum conhecido.

Mas os médicos não são só responsáveis por notícias ruins. Longe disso. São alguns dos principais agentes dessa crescente enganação da morte. No século 17, a expectativa de vida média de um inglês era de 35 anos; hoje gira em torno de 80. Mais do que dobrou ao longo dos séculos. Graças ao grande avanço da ciência, que se vê executada nas mãos de farmacêuticos, enfermeiros, médicos, fisioterapeutas e afins. Executada pelos governantes também ao promover políticas de saúde pública.

É um prazer, para o médico, ser agente das fantásticas inovações tecnológicas que tivemos nos últimos anos. Prazer este que, em algumas pessoas, trisca a soberba, mas que felizmente é compartilhado com o paciente na maioria das vezes, com a sua satisfação e melhora de sua saúde.

Essa satisfação, concedida ao médico, tem também seu preço a pagar. Estando ele a ludibriar a morte, também se faz esta última mais presente a ele. Não em tal intensidade como no caso da pessoa que sabe que sua contagem regressiva está a terminar.

O médico lida das mais diversas formas com ela. Do saudável amadurecimento e crescimento existencial ao humor negro e, algumas vezes, até à doença, principalmente as da psique. Mas é um peso que temos que processar.

Mito ou verdade? Médicos morrem mais que o cidadão médio? Mito. Morrem tanto e das mesmas maneiras que a população geral. Ao menos isso. Apesar do ofício de enganá-la, ela não se ressente e vem da mesma maneira que para todos os outros.

Mas enfim, chega de morte. Deixemos ela no canto dela, deixemos que ela venha quando a ela convier, e mergulhemos no nosso sonho de eternidade. Vivamos nossa vida, bola pra frente!

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