De 'mulher-bomba' a preconceito na OAB: Esta muçulmana quebrou o ciclo da xenofobia




Aos nove anos, Charlyane Silva de Souza foi batizada na Igreja Católica, assim como 57% dos brasileiros. Era praticante assídua da religião e Sete anos atrás teve uma grande mudança: ela decidiu trocar sua crença cristã e se converter ao islamismo. Foram quatro anos de estudos até acreditar que Alá era seu "Allahu Akbar" - ou em bom português, "Deus Maior".

Sua história como muçulmana começou com uma amiga, que decidiu se casar com um rapaz da Turquia. Como condição, precisava se converter ao islamismo e estudava a religião e a cultura turca. "Achava que ela era louca por trocar toda a sua vida e sua crença por um homem. Me preocupei muito que ela estivesse fazendo a escolha errada", conta Souza.

Advogada, Charlyane trabalha como representante jurídica na Mesquita Brasil, em São Paulo

A preocupação foi tão grande que Souza começou a estudar o Alcorão. Conversavam, aprendiam sobre as leis islâmicas, assim como a representação da mulher na região. "Chegou um momento que eu compreendi como o islã prega o amor ao próximo e desconstruí o preconceito que existia em mim", explicou. "Comecei a estudar para persuadir minha amiga a mudar de ideia e acabei me convertendo. São as brincadeiras da vida."

Foram mais quatro anos de estudos até Souza aceitar usar o hijab - a vestimenta do véu que as mulheres usam para preservar a imagem do rosto, cabelo, orelhas e pescoço. "Nos primeiros meses, me surpreendi com o quão bem aceita fui pela minha família, amigos e colegas da faculdade. Eles respeitaram a minha decisão", afirma.

A jovem estudava direito na Faculdade Anhanguera, em São Paulo. A tão sonhada formatura aconteceu no final de 2015. Mas antes desse fim de ano feliz, ela precisou enfrentar o primeiro episódio de preconceito xenofóbico da vida.

Em março de 2015, quando cursava o penúltimo semestre, a estudante de direito decidiu prestar o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No dia 15 de março de 2015, Souza acordou cedo, arrumou-se, vestiu o seu hijab e se dirigiu ao local da prova. Logo na entrada, foi parada por um fiscal para uma revista - nada foi encontrado. A estudante foi conduzida até chegar à sala onde seria aplicada a prova.

Com menos de 30 minutos, uma segunda fiscal foi até sua mesa e pediu para que ela, a única muçulmana a fazer exame, se retirasse da sala. Em um local reservado, foi submetida a um extenso interrogatório sobre sua vida: "Perguntaram se eu era brasileira, se eu portava o documento de registro de muçulmana, por que eu estava vestida 'assim'", explicou. Souza respondeu a todos os questionamentos e foiretirada pela comissão a continuar na prova caso continuasse vestindo o hijab.


Charlyane foi impedida de usar o seu hijab durante o exame da OAB em 2015

Na época, a OAB alegava que o edital proibia o uso de qualquer objeto que cobrisse a cabeça e sugeriu a candidata fazer a prova com o véu em uma sala reservada. "Eu expliquei que meu hijab não era um simples objeto de chapelaria, que eu poderia tirar e colocar na hora que eu quisesse. Faz parte da minha religião, de quem eu sou", reclama.

Souza foi pressionada mais de dez vezes pelos fiscais de prova a retirar o véu. No momento de maior tensão, a xenofobia se concretizou:
A examinadora me questionou se eu era árabe e respondi que não. Ela me pediu para comprovar minha religião porque, segundo ela, qualquer um poderia 'se fantasiar' de muçulmana.

O interrogatório fez a estudante perder mais de uma hora de prova. E isso impactou no resultado final: ela foi reprovada.

Depois do episódio, a OAB aceitou rever o edital que proibia o uso de vestimentas religiosas. O Conselho Federal da OAB proibiu que os fiscais questionem as orientações religiosas dos candidatos, em uma tentativa de evitar novos episódios xenofóbicos. "A OAB não aceita e não pode acatar qualquer ato de discriminação, seja por opção religiosa ou cultural", disse na época ao portal G1 o ex-presidente da OAB Marcus Vinicius Furtado Coelho.

Pouco mais de um ano depois, agora bacharel em Direito, foi convidada pela OAB a fazer parte de sua Comissão Especial de Direito e Liberdade Religiosa. Hoje ela representa os muçulmanos na entidade.

A gente aguenta firme porque acredita que precisa amar o próximo e não revidar a agressão, mas é muito triste aguentar isso diariamente.

Com o canudo na mão, a estudante não deixou passar em branco outros atos de xenofobia. Olhares na rua, risinhos, piadas, comentários na ponta de ouvido. Tudo isso se tornou rotina na vida de uma jovem que não tem vergonha de sua fé. "A gente aguenta firme porque acredita que precisa amar o próximo e não revidar a agressão, mas é muito triste aguentar isso diariamente", relata. "Tenho amigas que preferem não sair de casa a passar por esse tipo de situação. Eu faço ao contrário; enfrento."

No começo de junho, Souza sofreu mais um episódio de preconceito. Ela saía da aula de pós-graduação, próximo da Avenida Paulista, quando um grupo de homens começou a gritar: "Mulher bomba, mulher bomba!". A resposta veio num tom superior. "Mais respeito, por favor", disse a jovem, que logo depois denunciou à Polícia Civil o caso como xenofobia.

A jovem formada em direito quebra o ciclo da xenofobia. Dá voz ao silêncio que marca esse tipo de crime. E, se possível, grita até que a sociedade possa ouvir. "Se a sociedade é preconceituosa, a gente precisa ensinar, consertar. Continuar a agir como vítima silenciada só vai fazer que eu aceite e ache bom ficar sem minha voz."

Postar um comentário

0 Comentários