CACARECO, O VEREADOR MAIS CASCA GROSSA QUE SÃO PAULO JÁ ELEGEU...

Outubro de 1959. Eu era um pirralho que mal acabara de completar nove anos e acompanhava meu pai à escola na qual ele votava.


Ele se desencantara da política com o suicídio de Getúlio Vargas, que lhe provocou até lágrimas. Desde então, referia-se a todos os políticos como safados eladrões, reservando os piores insultos a Carlos Lacerda, o corvo, por considerá-lo culpado da morte do seu ídolo.


Via com simpatia o protesto que tinha brotado de forma quase espontânea na capital paulista: como manifestação de repúdio ao governador rouba-mas-faz Adhemar de Barros e ao baixíssimo nível dos 450 candidatos à Câmara Municipal, pregava-se o voto no rinoceronte Cacareco.


O simpático animal fora emprestado pelo zoológico do Rio de Janeiro quando da fundação do congênere paulistano e caíra na graça do público. Então, no momento em que os cariocas o pediram de volta, houve resistência à sua devolução.


Como o Cacareco estava no noticiário exatamente no período eleitoral, bastou o jornalista Itaboraí Martins lançar essa ideia para que ela galvanizasse a cidade.



Surgiram centenas de cabos eleitorais fazendo campanha voluntária para o rinoceronte. Até cédulas em seu nome foram impressas por gráficos brincalhões.


Naquele tempo não havia urna eletrônica. O mesário entregava um envelope e o eleitor se dirigia para a cabine, nele colocava cédula(s) do(s) candidato(s) que escolhera, lacrava e ia botar na urna.


Meu pai queria votar no Cacareco, mas não tinha cédula. Eu olhava para o chão, na esperança de encontrar alguma, dentre as milhares espalhadas pela calçada. E encontrei.


Todo orgulhoso, entreguei-a a meu pai. Depois, ao sair da sala de votação, ele me garantiu que aproveitara mesmo aquela cédula.


Não via a hora de chegar em casa e contar à minha mãe a pequena aventura. Hoje, 56 anos depois, o episódio continua vivo na minha memória.


Cacareco foi o vereador mais votado de 1959, com quase 100 mil votos. O partido que elegeu a maior bancada teve, ao todo, cerca de 95 mil votos. E o candidato com maior votação não passou de 11 mil.


O rinoceronte, entretanto, não tomou posse, pois havia sido devolvido ao zoológico carioca dois dias antes do pleito. O que não impediu que a comemoração do seu triunfo perdurasse até o carnaval seguinte, quando várias marchinhas o homenagearam, inclusive uma inesquecível:Cacareco é o maior, gravada pelo palhaço Risadinha:
"Ca...ca...Cacareco, Cacareco, Cacareco é o maior.
Ca...ca...Cacareco, de ninguém tem dó..."

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O então jornalista Neil Ferreira, que depois se tornaria publicitário famoso, também lhe dedicou uma crônica saborosa na principal revista brasileira da época, O Cruzeiro (24/10/59): Cacareco agora é Excelência. Eis alguns trechos:

"Dos 450 candidatos que ‘ofereceram suas vidas em holocausto ao bem-estar público’ concorrendo às 45 cadeiras da Câmara Municipal de São Paulo, somente um -- Cacareco -- conseguiu empolgar, de maneira espetacularmente inédita o eleitorado paulistano. 

"Sem prometer nada (ele não pode prometer: não sabe nem falar), sem partido politíco definido (...), enfim, com sua candidatura lançada somente alguns dias antes do pleito, sua eleição está garantida. A soma de seus votos é um recorde nas eleições municipais de São Paulo.

                                   A força de um jingle espirituoso elegeu Tiririca...

"Sua candidatura ganhou corpo no seio da massa, de maneira espontânea, conquistou o restinho da classe média que ainda não morreu de fome e atingiu as mais altas camadas da burguesia.

"Cacareco se zangou quando foi intentada (e conseguida) uma solução extralegal e antidemocrática para sua candidatura: (...) as forças ocultasconseguiram que o candidato popular fosse exilado, dois dias antes da eleição, para o Rio de Janeiro. 
"O golpe consumou-se na calada da noite, mas a coisa não foi tão calada assim: sem mais aquela, enfiaram-no num caminhão. 

"Aí, sim, ele se danou. Ficou perigoso. Não só para o regime, mas (e principalmente) para quem estava por perto. Mas o Povo e as Classes Oprimidas foram magnificamente à forra e concederam, aproximadamente, cem mil votos a Cacareco".

Bons tempos aqueles, em que havia brasileiros cordiais utilizando o humor como arma contra a sordidez da política!

                               ... bisando o fenômeno meu nome é Enéas.

E, cá entre nós, talvez fosse melhor termos no Legislativo um autêntico casca grossa como o Cacareco, do que um bufão banal como o Tiririca (que em 2010 se elegeu deputado federal com 1,35 milhão de votos e em 2014 se reelegeu com 1,02 milhão, votações proporcionalmente muito inferiores à de Cacareco)


Pois o primeiro seria capaz de, imbuído de justa indignação, investir contra alguns deploráveis personagens lá presentes.


Enquanto o Tiririca está longe de ser um daqueles palhaços cuja alegria é ver o circo pegar fogo. Quer mais é levar vantagem, como recomendava o craque Gerson, que a publicidade transformou em símbolo do amoralismo oportunista..


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