O CURRAL ELETRÔNICO


O voto de cabresto continua apesar do avanço tecnológico – a Internet tem força mas a televisão ainda se impõe

Em outubro de 1998, quando da reeleição de Fernando Henrique Cardoso, escrevi este artigo, O curral eletrônico, acentuando a força da televisão e sua imensa capacidade de manipular. A internet apenas ensaiava seus primeiros passos, mas a televisão ainda hoje continua comandando o espetáculo.

A República Velha no Brasil, época do café com leite durante a qual os senhores dos cafezais paulistas faziam rodízio do poder com os donos das boiadas de Minas Gerais, caracterizou-se pelos currais eleitorais, a malta de eleitores conduzida por cabos eleitorais e reunida em quartéis. Ah, muita gente não se lembra. Matavam-se bois, assavam-se leitões, distribuíam-se doses de cachaça e jarros de cerveja, acertava-se a compra de votos, não raras vezes por um par de botinas. Quer dizer, dava-se um pé, o outro só depois se o candidato ganhasse.

Era uma festa os tais quartéis, com muita dança, rivalizando-se com as barraquinhas e leilões realizados nas pequenas cidades pela Igreja Católica. Gado, o povo era tratado como gado, tangido por jagunços e cabos eleitorais para a ordenha de votos. Os quartéis eleitorais deram o tom da república velha e sobreviveram na nova depois da revolução de 30. Só foram abolidos pouco antes do golpe militar de 1964. Abolidos não é bem a palavra. Eles foram, isto sim, substituídos.

Os anos sessentas do século passado são a época em que se consolida no Brasil a televisão. Os políticos e os manipuladores da opinião pública começam a dispor do meio de comunicação mais eficiente até então inventado pelo homem. 

O quartel eleitoral da primeira metade do século, onde se podia ver o político em carne e osso, cedeu lugar ao quartel eletrônico, onde o político “virtual” pode penetrar em todas as casas ao mesmo tempo, numa onipresença, que é uma propriedade divina, a fim de divulgar sua mensagem. Para isso, o novo político virtualizado necessita de um novo tipo de discurso e de uma nova postura. Os mínimos gestos são estudados. As eleições de 4 de outubro talvez entrem para a História como uma das mais manipuladas utilizando-se a televisão.

Ao lado do horário gratuito e obrigatório da propaganda eleitoral, favorizando as elites já no poder, somam-se os comentaristas e os apresentadores, quase todos comprometidos com a falsa impressão de imparcialidade. E para dar o toque final neste quadro de manipulação entram os malfadados institutos de opinião pública.

É possível que na história do Brasil nunca o eleitorado tenha sido tão manipulado como foi agora, graças sobretudo a eficiência da televisão via satélite. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, uma mensagem esteve no ar, 24 horas por dia: Fernando Henrique é um grande intelectual que pode representar o Brasil, Lula é um operário ignorante sem condições de governar.

Os institutos de pesquisa, como a querer dar credibilidade a essa campanha disfarçada, vieram confirmar com a suposta frieza estatística a vitória já certa em suas pesquisas dos eternos representantes das elites brasileiras. No final, descobriu-se o embuste em grande parte das pesquisas, mas já era tarde. Os institutos, os ibopes da vida, enganaram-se na maioria dos casos redondamente, para não dizer, manipularam inescrupulosamente.

Em São Paulo foi o pior caso. A candidata do PT, em quarto lugar nas pesquisas de opinião, muito abaixo de Covas e Rosi, surpreendeu ao alcançar uma grande votação só perdendo a chance de concorrer ao segundo turno por uma mínima diferença com Mário Covas. Ficou mais do que claro. Covas ganhou graças ao chamado voto útil, até simpatizantes do PT votaram nele, convencidos de que Marta Suplicy não tinha nenhuma chance de ganhar.

Manipulou-se com uma eficiência que os cabos eleitorais dos antigos quartéis jamais sequer sonharam. Neste jogo sujo, entraram até o Ratinho, agora do SBT, e seu substituto na Record, o Leão Livre. Os dois representantes máximos da baixaria na TV, exageraram na dose e foram punidos pelo Tribunal Eleitoral, os bodes expiatórios, por assim dizer, no festival de manipulações.

Será que estamos todos presos num curral eletrônico?

Tarcísio Lage, jornalista, escritor, começou na Última Hora de Belo Horizonte no início dos anos 60. Com o golpe de 1964 teve de deixar a cidade e o curso de Economia na UFMG. Até 1969, quando foi condenado pela Injustiça Militar, trabalhou em várias redações do Rio e São Paulo. Participou da tentativa de renovação da revista O Cruzeiro e da reabertura da Folha de São Paulo, em 1968. Exilado no Chile no final de 1969, trabalhou, em seguida, em três emissoras internacionais: BBC de Londres, Rádio Suiça, em Berna, e Rádio Nederland, em Hilversum, na Holanda, onde vive atualmente. As Tranças do Poder é seu último livro.

Direto da Redação é um fórum, editado pelo jornalista e escritor Rui Martins

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